Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Paulo Rangel, o ministro que, qual Pombal do século XXI, após as ondas telúricas, levantou uma Lisboa que não caiu.
Das misérias humanas, sei eu bem, embora não tenha, como sabeis, transmitido a nenhuma criatura esse legado, mas jamais deixei de me interessar pelas idiossincrasias da espécie, especialmente quando se trata de comparar a minha ilustre pessoa à do meu ilustre amigo Quincas Borba, pouco dado agora, neste estado, às escritas, mal-refeito ainda do estado de penúria e desemparo com que se finou da vida.
Mas vamos, então, ao que interessa. Como tendes conhecimento, eu, Brás Cubas, sou o autor da “primeira narrativa póstuma do Brasil”, e, portanto, devo ser respeitado. Não é todo defunto que se dá ao trabalho de contar a sua própria história, ademais com o brilho de minha pena, afiada pela navalha da ironia e do sarcasmo, para vos deixar um ‘património do nada’. Já o meu amigo Quincas Borba quis, com o seu Humanitismo, criar uma filosofia que mais não será que egoísmo, disfarçado sob um véu de altruísmo, e que mais não nos deu do que a cómica expressão “Ao vencedor, as batatas” – que, para ser honesto, e sabendo-se que estas solanáceas se comem, assim concedem, na melhor das hipóteses, escatologicamente, uma porcaria.
Mas não me perca a atenção, caro leitor, pois as diferenças entre nós são cruciais. Enquanto eu, Brás Cubas, fui um desocupado crónico, que dedicou sua vida ao ócio e às frivolidades da alta sociedade, Quincas Borba teve a ousadia de ser um homem de ideias — não menos absurdo por isso.
Agora, sejamos sinceros: entre o ócio intelectual que me caracterizou e a filosofia insana de Quincas Borba, o que é mais nobre? Difícil dizer, caro leitor, difícil dizer. De qualquer modo, ambos tivemos nossos momentos de glória.
Sabemos todos que as glórias surgem, as mais das vezes, das desgraças. E, ah, meu prezado leitor, mas não nos devemos atender em demasia ao conceito de desgraça. Por exemplo, na transacta semana, a cidade das sete colinas, e arredores, foi sacudida por um terremoto. Uma desgraça certa se não fosse a realidade pregar uma peça: o tremor, ao invés de devastar tudo, não passou de um tremelique inofensivo, que nem telha fez cair. No entanto, se a terra não se moveu com grande entusiasmo, já a alma dos políticos, ah, essa sim, tremeu de excitação! Que ocasião perfeita para se glorificarem, como se tivessem salvado a cidade de uma hecatombe bíblica.
Agora, imagine, leitor, eu e Quincas Borba nos reunimos em torno desse evento tão magnânimo, discutimos forma de honrar o terremoto de Sines de 2024, com artes de Voltaire em 1755. E daí a nada estava Quincas tomado por uma inspiração doida, a compor versos sobre a “grande vitória do espírito humano” diante do “inesperado cataclismo”. Segundo ele, o Humanitismo havia provado sua força mais uma vez, pois, mesmo diante do nada, o ministro Rangel fora capaz de transformar o vazio em glória. Ah, que bela reviravolta da lógica! Glorificar-se por sobreviver ao que não aconteceu é mesmo um feito digno de nota.
Eu, por outro lado, não pude deixar de me divertir com tamanha patacoada. Que poema, que nada! Propus que escrevêssemos algo mais adequado ao contexto: uma ode à inutilidade da prontidão política, que se exibira com pompa e circunstância diante de um abalo que nem o Serafim acordara.
Não chegámos a consenso, embora tivéssemos trabalhado com afinco e denodo. Quincas Borba pretendeu linguajar grandiloquente e heróico, como se a resposta do Governo tivesse sido uma vitória monumental – e merecesse as batatas. Já eu, preferia tom mais sarcástico e jocoso. Divergimos, e portanto, como sucede a bons políticos, criámos cada um seu partido, partindo a concórdia.
Assim, a mim saiu-me isto:
Ó Terra ingrata, que em teu forte bramir,
Lisboa em pó já fizeste abater.
Agora, tremes mas sem força a ferir,
Tão leve o abalo que nada há-de ceder.
Se outrora o Tejo em ondas te acolheu,
E a cidade em chamas o céu ofendeu,
Hoje, em Sines, apenas murmurou
Um fulgor brando, que o sono não quebrou.
Mas, ó governos, tão prontos e sagazes,
Ao menor tremor, do que sois capazes!
De, em alta voz, a todos proclamar:
Que prontas estão as defesas a marchar.
Ó Rangel, ministro de virtude,
Que, com firme e solene atitude,
Te ergueste, qual gigante pela paz,
Pronto a defrontar o que a Sorte traz.
E se em Setecentos, o grande Pombal,
Com mão sábia, reconstruiu Portugal,
Tu, Rangel, no abalo que nada derribou,
Firmaste a fé em terra que jamais tombou.
Em Belém, Marcelo, em voz segura,
Exaltou a prontidão que, em tal altura,
Fez da ameaça um exercício vão,
Mas onde o Estado mostrou perfeição.
Ó, como tal Governo é capaz
De, na menor crise, erguer-se audaz!
Pois se a Terra treme, sem destruição,
Louvores mil à força da Nação.
E se assim cantamos, em verso aclamado,
O sismo que nenhum deixou acamado,
E que, em verdade, nada abalou,
Foi pela grandeza de quem não hesitou.
Camões, visses tu como se faz,
Como quem nos governa é falaz…
Pois não sendo a ruína o qu’o valor mede,
É à prontidão qu’o perigo cede.
Por sua vez, ao meu amigo Quincas Borba, já pouco humorado, ademais por, por mofice, lhe afiançar ser eu a seguir o cânone, saiu-lhe apenas isto:
Ó Terra ingrata, o teu forte bramir,
Lisboa em ruína ele já fez cair.
Mas, hoje, em Sines, apenas murmurou
Um sismo brando, que a casinha não quebrou.
Ó Rangel, ministro sem engano,
Com tal destreza evitaste o dano!
Ergues-te, qual gigante, sem tardança,
A defrontar a Sorte com a Esperança.
Se em Setecentos, se alevantou Pombal,
Com sábia mão, a reconstruir Portugal,
Tu, Rangel, no abalo que nada derrubou,
Atinaste que a terra não tombou.
E, na praia de Belém, com voz segura,
Marcelo louva a prontidão que n’altura,
Fez da ameaça um trabalho são,
Onde o Estado mostrou a perfeição.
Ó, como tal Governo é capaz
De, na menor crise, erguer-se audaz!
Pois se a Terra treme, sem destruição,
Louvores mil à força da Nação.
E se assim cantamos, em versos aclamados,
O sismo que deixou a todos acordados,
Mas que, em verdade, nada abalou,
Foi pela grandeza de quem não hesitou.
Camões, visses tu o que se faz,
E do que quem nos governa é capaz…
Pois, não sendo a ruína o que o valor mede,
É à prontidão qu’o perigo cede.
Agora, proponho aos nossos leitores que decidam a quem pertencem as batatas.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.
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