Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para José Gabriel Quaresma, que se assume como jornalista & ‘anchor’ da CNN Portugal, ‘media trainer’e promotor de uma clínica de podologia.
José Gabriel Quaresma é um espécime digno de estudo em qualquer gabinete de curiosidades sociais e antropológicas, um verdadeiro campeão na arte da elasticidade ética. Este prodígio, iniciado na imprensa desportiva – onde em incerto dia, por certo, terá relatado ou comentado ou tergiversado, em qualquer dos casos com fervor, o enredo épico de um Merelinense-Riopele, como se o Johnny Pirulito, nascido e criado em São Pedro de Merelim, fosse a reencarnação de Homero, não o Serpa d’A Bola, mas o da Ilíada ,– encontra-se agora numa complexa demanda: sarrafada no jornalismo, que vale sempre a pena, se os despojos concederem pilim e, de permeio, se sumirem excrescências.
Com efeito, despindo-se já há muito das nobres vestes de especialista do ludopédio, trocou ele agora o gramado pelos solados – não há mais euforia ao golo chutado, mas temos agora, nele, o drama caloso dos pés alheios. Sim, meus amigos, José Gabriel Quaresma – que consegue, sem dietilamida do ácido lisérgico, ver “coisas mágicas” numa conversa com Ana Mendes Godinho –mergulha, neste momento, os seus talentos a pés juntos como embaixador da nobre ciência da… podologia.
Tendo-me finado nos tempos de Dom Pedro II, o nosso aqui de Pindorama – ainda Charles William Miller era um moleque de São Paulo que nem sequer imaginava vir a dar uns pontapés numa bola no Saint Mary’s Football Club, na Velha Albion –, concedo, pelo que me foi sendo permitido assistir deste lado, que, tal como o próprio futebol, também o jornalismo desportivo é uma forma de arte, uma poesia em movimento, um espaço onde os grandes espíritos podem divagar sobre os matizes tácticos de um empate suado. Nada percebo de matizes, em verdade, mas José Gabriel Quaresma percebe. Porém, tudo cansa. E assim, cansado de cantar as glórias e misérias da esfera de couro, e de debitar o teleponto, e de fazer entrevistas espúrias, decidiu José Gabriel Quaresma que, na verdade, o grande campo de batalha da Humanidade é outro: os pés.
Ah, os pés! Esses que, na sua modéstia, carregam o peso do Mundo e, ao que parece, também os delírios empreendedores e de marketing de certos jornalistas.
Mas não é de se estranhar. Em perspectiva, sempre soubemos que José Gabriel Quaresma tinha uma queda – ou seria melhor dizer, um tropeço? – pela autopromoção e pelo marketing um tanto quanto escorregadio, mesmo se voando, por vezes, no aconchego da Força Aérea. Aquilo que começou com a sua entrada no fascinante universo do pomposo ‘media training’ – uma espécie de alquimia moderna onde se transforma uma fala truncada em eloquência estudada, para endrominar o povoléu – rapidamente evoluiu para algo mais… tangível.
Ora, se ele já ensinava, avidamente, tanto a militares como a civis, que nenhum negócio se deve descartar, a não trocarem os pés pelas mãos em entrevistas, nada mais natural que passar a ensinar, também, a não se porem as mãos – ou os pés – em tratamentos errados.
Portanto, melhor do que aconselhar a coluna perfeita para a câmara, José Gabriel Quaresma recomenda agora o bem-estar pedestre onde, graciosa e elegantemente, se tratou. E como promove! Com um entusiasmo digno de um vendedor de elixires miraculosos em feira medieval. Notem só o enunciado sublime recentemente derramado nas redes sociais por este “Communication Specialist”, e que eu tomo a liberdade de transcrever, com o devido respeito que tal prosa, no original, merece:
“Parece estética e também é! Mas, é, sobretudo, bem estar e saúde! Sobretudo, isso! 🙂 Unhas destruídas por causa da corrida e do Muay Thai. Verruga plantar = prego espetado na planta do pé há anos – com uma Maratona e 20 meias maratonas pelo meio – ! 🦶 Tantos anos depois, finalmente, um pé(s) novo(s), sem dor!🚀 Obrigado, Miguel Vila Pouca, pela excelência, profissionalismo, conhecimento, diferenciação, simpatia. ✨ E, já agora, por me explicares a importância e a abrangência da podologia no nosso bem estar! 🙏 Não imaginava 🤷🏽♂️ Na verdade são os pés que sustentam tudo!…🧿 Mais uma razão para não meter os pés pelas mãos 🙂↔️Centro Clínico Andar”.
Ah, que espectáculo! Que lirismo dos calcanhares! José Gabriel Quaresma, um artista, desenha diante dos nossos olhos um retrato sublime da jornada heróica do seu próprio pé – um pé que, ao contrário dos mortais comuns, atravessou maratonas e meias-maratonas, na Grécia, presumo, com uma verruga plantar como companheira fiel.
E que subtileza. Não é qualquer um, e somente poderia ser um “Communication Specialist” e um “Anchor & Senior Journalist”, que se atreve no mesmo parágrafo a usar uma metáfora bíblica – um “prego espetado”, lembrando a cruz – e o emoji 🚀, mas aí está a genialidade de um homem único – um homem que concilia o sublime e o ridículo com a leveza somente alcançada pelos mais refinados trapaceiros da retórica.
Agradecimentos públicos a Miguel Vila Pouca pelo “profissionalismo, conhecimento, diferenciação, simpatia”? Certamente, porque nestes vastos negócios é fundamental haver simpatia. Ou empatia, mesmo quando somente se vislumbra uma superciliosa empáfia. Enfim, nas mãos do Vila Pouca o pé do cliente não precisa apenas de muito alívio, mas também de uma pitada de charme na hora da remoção da verruga – e se for feito sob a forma de promoção através de um jornalista comercial, tanto melhor.
E que dizer mais do maravilhoso “São os pés que sustentam tudo!” – quanta verdade condensada em frase tão curta! Quem, afinal, poderia nos revelar, senão José Gabriel Quaresma, que o eixo do cosmos repousava tão humildemente sobre os nossos calcanhares? Nietzsche, que dizia que “Deus está morto”, talvez devesse ter conhecido José Gabriel Quarema antes de proferir tal declaração. Se assim fosse, o prussiano teria descoberto que a chave para a redenção humana estava, afinal, na podologia.
Enfim, com Miguel Vila Pouca e o Centro Clínico Andar, talvez José Gabriel Quaresma não salve a sua alma – eu próprio não me acho a salvo de nada, sobretudo ao ridículo dos outros –, mas, ao menos, posso garantir que os seus pés caminham em próspero rumo, aliviados do fardo das verrugas.
Agora, se permitirem, faço uma pequena pausa para reflectir sobre a transição deste jornalista que, outrora, nos encantava com as suas narrativas de grandes conquistas futebolísticas – se calhar, exagero –, e que hoje nos educa sobre a importância do bem-estar plantar, enquanto “nos mostra as passagens da vida vista da janela “, mas só para quem “gosta de coisas mágicas”, sobretudo com a Ana Mendes Godinho. Eis-nos aqui, Senhor, contemplando um notável monumento de versatilidade!
E quanto à Deontologia e à Ética jornalística? Ah, isso são ninharias para espíritos tão elevados como o de José Gabriel Quaresma, que já transcendeu as amarras das profissões mortais para trilhar o caminho divino da multifuncionalidade. Jornalismo, “media training”, lambe-botismo e podologia – tudo cabe na sua paleta, contanto que, claro, haja um bom contrato de marketing envolvido.
E assim seguirá, sem verrugas nem mácula, a carreira de José Gabriel Quaresma, exemplo ímpar de como, neste vasto mercado de trabalho, o importante não é exactamente para onde seus pés estão indo, mas sim quanto você pode facturar com eles, mesmo se vergastando o Estatuto do Jornalista. Afinal, como o próprio diria, por certo, com uma piscadela, talvez não tão boa como a do José Rodrigues dos Santos, mas com um emoji voador, importante mesmo é “não meter os pés pelas mãos”. E se houver calosidades, o Miguel Vila Pouca trata.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.
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