Gouveia e Melo tem razão: qualquer militar fora da efectividade de serviço pode concorrer a um cargo político, e ocupá-lo, como qualquer outro cidadão. É assim em democracia. Então por que não largam os media esta questão?
Se tantos comentadores se informassem antes de debitar, conheceriam as restrições ao exercício de direitos pelos militares estabelecidas na Constituição (art.270º) e na lei (art.25º a art.33º da Lei de Defesa Nacional). E então emitiam opiniões informadas e substantivas, em vez de só martelarem o tema. Claro que Gouveia e Melo pode ser candidato a eleições políticas, se deixar a efectividade de serviço; para quê insistir na questão? A insistência só dá palco mediático ao protocandidato; e assim se vitimiza (as massas “adoram” vítimas) e compensa o autoritarismo que o revela como aspirante a caudilho – algo tão apreciado pela direita sociológica e alguns membros da sua tribo corporativista. Os jornalistas sabem do seu ofício e não são ingénuos: martelar o tema é só um pretexto para manter a notoriedade. É a notoriedade que lhe garante números menos maus nas sondagens, e a ideia da candidatura.
De notar que até o comandante de um exército está vinculado a um dever de isenção: “Os militares em efectividade de serviço são rigorosamente apartidários e não podem usar a sua arma, o seu posto ou a sua função para qualquer intervenção política, partidária ou sindical, nisto consistindo o seu dever de isenção.” (nº2 do art.27º da LDN, reforçado no art.20º do RDM). Gouveia e Melo violou abundantemente este dever de isenção ao emitir opiniões sobre políticas públicas, até de defesa; basta destacar o debate que lançou sobre a conscrição, ou o excesso de elogios pelos quais o PS (que o colocou nos cargos que lhe deram mediatismo) o acusou de ir longe demais. Gouveia e Melo fala várias vezes como se representasse e comandasse as Forças Armadas, menosprezando o CEMGFA, seu chefe militar, que tem essas competências legais. Além disso, não é humanamente possível estar sempre no palco mediático (e reger cadeiras universitárias) e estar “110% ocupado com a Marinha”. A sua atuação revela bem que o comando da Armada é só (mais) um meio para a sua promoção pessoal – e a par se revela a sua vaidade e o seu messianismo, típicos dos caudilhos.
Gouveia e Melo tem desproporcionada notoriedade mediática e promove a sua imagem pelo cargo que ocupa, sempre a dizer que não faz política. É óbvio que faz. Mas, sem contenção por cima, e mostrando-se sempre simpático para quem lhe pode ser útil, o Governo tem-no protegido (porquê?), em vez de o advertir publicamente (como fez o seu anterior chefe em 2023) ou de o exonerar com justa causa. Face à passividade dos órgãos de soberania ante flagrantes violações de deveres militares e do seu cargo, Gouveia e Melo tem razões válidas para achar-se invulnerável e impune. E os observadores, em todos os setores dos media, à política à justiça, percebem que a passividade dos órgãos de soberania face aos excessos de um funcionário seu subordinado revela fragilidade e receio. Mas têm receio de quê?
Diz-se que exonerar Gouveia e Melo, ou não o reconduzir, torna-o mártir, e que a agência de comunicação, formal ou informal, que o promove exploraria esse facto; neste cargo pode ser contido. Errado: a promoção mediática resulta mormente do cargo público, que usa para ter palco formal e permanente nos media; mantê-lo em funções só garante que é ele que decide quando sai. A exoneração extemporânea no comando da Armada não deixam dúvidas que os órgãos de soberania exercem o seu poder sem receio; mas o Governo tem de explicar com objectividade a justa causa para o afastar, para esvaziar o “martírio”.
Regressando ao ponto inicial, há uma apreensão legítima por trás do formalismo: Gouveia e Melo fora da efectividade de serviço não é um militar num cargo político, formalmente; mas a sua conduta substantiva seria ditada por aquilo que o moldou e foi durante 40 anos, chefe militar – não é um “sinal na testa”, é uma marca indelével na personalidade e na conduta. Desde 1979, Gouveia e Melo nunca foi outra coisa senão militar, sobretudo operacional, e submarinista. Nem formação tem noutras áreas. Como disse o General Loureiro dos Santos: “O grande problema dos militares a partir de certa altura é que não sabem fazer mais nada.”
A comparação com o General Ramalho Eanes menospreza a diferença de idades (40s-60s) com que se colocou a mudança, o percurso académico e a grande flexibilidade e curiosidade intelectuais do PR eleito em 1976. Alguém consegue imaginar Gouveia e Melo, hoje com mais de 60 anos, a fazer, sem favores, investigação e um doutoramento seja no que for?
Com a memória das massas sobre o vice-almirante das vacinas a dissipar-se, a “agência de comunicação” vai arranjando pretextos para ele ter frequente palco mediático, nos jornais e nas TVs, como já assinalei. Ele cumpre com gosto: exibe-se e debita slogans para fazerem manchetes. Há décadas que debita slogans; e tem êxito com tantos que preferem a imagem à substância. Por isso, não houve reações públicas à frase “Os chefes militares eram mais do tipo Português Suave”, que prova que rejeita as restrições legais ao exercício de direitos pelos militares, que os anteriores (em geral) respeitaram. Entre os quais estão o General Ramalho Eanes, que elogia, enquanto se refere a ele como indíviduo…
Merecem atenção as mais recentes ações de promoção mediática, duas entrevistas e três artigos de opinião. Na primeira entrevista, cumpriu o débito ritmado de slogans para aplauso das massas. O entrevistador parecia perdido, quiçá a fazer um frete; mas prestou-se a fazer um hino à superficialidade e à frivolidade.
No primeiro artigo, uma jornalista (ligada ao CDS) usou técnicas subtis para disfarçar que ela também está, pelo menos, a promover a notoriedade de Gouveia e Melo. E também martelou o tema do militar na política. Realço ainda esta “pérola”: “São muitos os que informalmente têm insistido junto de Gouveia e Melo para que arrisque uma candidatura a Belém”. Se é verdade, por que razão não pôs nomes? Dizer só “muitos”, e citar afirmações sem as atribuir, sugere uma ideia diferente do que pode ser a realidade: serão “muitos” só a autora e os que sonham com caudilhos? Se queria excluir esta interpretação, devia ter sido clara, e devia atribuir todas as citações.
Seguiu-se um artigo do director do Sol, com uma narrativa assente em desejos que tenta passar por factos, pretensamente determinista e sem considerar os pontos negativos deste protocandidato mas notando os dos eventuais demais. Calhou vir logo a seguir o relatório 3/2024 do Tribunal de Contas, que aponta falhas graves em processos de despesas da sua responsabilidade; logo o militar tratou de culpar os subordinados – enquanto reserva sempre para si os méritos quando as coisas correm bem. A desresponsabilização não é novidade. Mas onde está o exemplo de integridade, que alguns só pelas aparências lhe atribuem?
Veio a seguir uma entrevista na RTP. Parecia aquelas conversas entre um funcionário de um clube e o presidente desse clube para a televisão do clube. O entrevistador martelou o tema dos militares na política; e omitiu tudo o que pudesse prejudicar a imagem do entrevistado.
Por fim, destaco um artigo de opinião, que comentou esta entrevista. É patente a satisfação da autora com a entrevista e a candidatura presidencial. Como todos os anteriores, e outros, sustenta tudo em sondagens. Mas o número de contactos para obter uma resposta é crucial; hoje, longe das eleições, as sondagens representam quase só os ativistas e os que aceitam participar, uma fração cada vez menos significativa da população. Por isso, a notoriedade é decisiva: falar nele evita que a imagem nas massas se dissipe, e desapareça das sondagens, sobretudo face aos “pesos pesados” com um discurso alargado e profundo.
Nas referidas peças mediáticas vem a ideia de congregar votos à esquerda, o que merece uma gargalhada depois do Caso Mondego, no qual Gouveia e Melo violou os direitos de todos os membros da guarnição do navio perante todo o país e não só.
Mas o mais importante das referidas peças mediáticas é que nada dizem de substantivo, e ainda menos de negativo, sobre o protocandidato. Nada dizem sobre como alguém famoso por distribuir injeções e sem experiência política pode exercer bem o cargo mais político e menos executivo do regime. Nada dizem sobre o seu restante passado. Nada dizem sobre as virtudes e defeitos de Gouveia e Melo em geral, ou para o cargo de PR. Nada dizem sobre o seu programa. Nada dizem que justifique o voto numa figura com traços messiânicos e autoritários, e falhas graves na gestão pública. Nada informam; nada tentam esclarecer; nada escrutinam; nada acrescentam de substantivo. Parece que acham que se vota com base em slogans feitos manchetes, insistentemente debitadas pelos media. Assim como um cosmético…
Enfim, são hinos à superficialidade e à frivolidade; não são peças de informação nem de comentário: são peças de propaganda. Têm todo o direito de fazer propaganda por quem quiserem; mas então assumam essa agenda. Em suma, o tema dos militares na política é irrelevante. A questão substantiva é: este militar está a fazer política e campanha política no ativo, violando os deveres militares; os órgãos de soberania fazem de conta que nada se passa; este militar não tem as virtudes que os media lhe atribuem, nem está isento de graves condutas reprováveis no seu passado, apesar de a maioria dos media as evitarem; e este militar é um aspirante a caudilho. Já é tempo de alguém o dizer: Gouveia e Melo não serve para Presidente da República
Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas
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