A autarquia de Lisboa já gastou, desde Julho do ano passado, quase 430 mil euros a comprar kits alimentares para os centros de vacinação contra a covid-19, através de contratos nada transparentes. O primeiro contrato, em vigor até Novembro, serviu para fornecer a cada utente uma maçã, uma embalagem de água e um mini-pacote de bolacha maria. O segundo contrato, assinado por ajuste directo, no mês passado, no valor de 214.900 euros, serve agora para nada: os centros de vacinação estão praticamente vazios.
Os centros de vacinação contra a covid-19 em Lisboa estão “às moscas”, mas no mês passado, por ajuste directo e sem contrato escrito, a Câmara de Lisboa comprou 214.900 euros de kits alimentares à Albisabores – uma empresa de importação e exportação de Castelo Branco – para os distribuir pelos utentes.
O contrato, que durará até 12 de Julho – o que implica um custo diário de 1.760 euros – estará a abastecer os três únicos centros de vacinação ainda abertos, agora com uma procura residual, para não dizer praticamente nula, conforme constatou in loco o PÁGINA UM.
Ignora-se também que tipo de alimentos foram agora adquiridos, porque nem a Câmara Municipal de Lisboa nem a Albisabores quiseram fornecer informações sobre esta matéria. O gabinete de Carlos Moedas não respondeu ao e-mail do PÁGINA UM. A Albisabores, após um contacto telefónico, pediu perguntas por escrito, mas depois não respondeu.
O contrato em causa nem sequer foi reduzido a escrito, usando uma norma do Código dos Contratos Público, abusivamente invocada durante a pandemia, que permite esse expediente sempre que “a segurança pública interna ou externa justifica-o”. Ignora-se em que aspecto a segurança pública esteve em causa para a autarquia liderada por Carlos Moedas fazer ajustes directos para a compra de kits alimentares para um centro de vacinação – uma situação raramente feita em outros municípios. Não existe nenhuma sugestão nem recomendação de índole médica que justifique a necessidade de ingerir qualquer alimento ou bebida após a toma da vacina.
Em Lisboa encontram-se, actualmente, apenas três centros de vacinação contra a covid-19 em funcionamento, devido à já baixíssima procura. E mesmo esses estão praticamente sem fluxo de pessoas.
O PÁGINA UM fez, na tarde da passada quinta-feira e sexta-feira, uma visita “encoberta” (sem pré-aviso e identificação) aos centros de vacinação no pavilhão desportivo da Ajuda, no Templo Hindu (em Telheiras) e nos Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa nas Olaias, e todos estavam com mais pessoal de enfermagem e de logística do que de utentes.
Por exemplo, no pavilhão da Ajuda, aquando da visita do PÁGINA UM, quatro funcionários conversavam, ao computador, de frente para cerca de 40 cadeiras vazias. Uma diligente funcionária, de pé, e com os braços atrás das costas, aguardava uma eventual, mas nunca anunciada chegada de pessoas para a inoculação.
Nas Olaias, o cenário era similar. A sala de espera, de dimensão bem mais reduzida e com menos de metade das cadeiras, poderia ainda ser mais pequena. Mesmo que houvesse apenas uma cadeira disponível seria, mesmo assim, mais do que suficiente, porque durante o tempo da visita do PÁGINA UM foi evidente a ausência de interessados na vacina. Os três funcionários da Câmara que lá estavam, de coletes cor-de-laranja, tinham pouco mais que fazer do que contar o tempo. Pessoas para vacinar não havia.
À entrada do centro do Templo Hindu Radha Krishna, a recepção aos potenciais utentes era feita por sapadores da própria autarquia. O PÁGINA UM observou aí dois longos corredores com dezenas de cadeiras. Todas vazias. Nos guichés, ninguém levantado: apenas funcionários sentados. O “circuito” terminava num enorme auditório para a denominada “zona de recobro”, onde se observaram um pouco mais de uma dezena de pessoas. Não se vislumbrava ninguém a comer ou com qualquer coisa parecida com um kit alimentar.
Mesmo sem informação disponibilizada pela autarquia de Lisboa e pela Albisabores, este contrato de 214.900 euros poderá, em princípio, não ser muito diferente daquele que foi também assinado em 19 de Julho do ano passado por estas mesmas entidades.
Nesse contrato, cujos detalhes também não constam no Portal Base, a Albisabores já teve de se sujeitar a um concurso público e “vencer” uma proposta da Sogenave. Mas também aqui se recorreu a um novo expediente: na sua base esteve um concurso público limitado por prévia qualificação, sem publicação de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia, porque não ultrapassava o limite de 221.000 euros. Não ultrapassava, diga-se, por apenas 6.100 euros. Note-se que se tivesse sido o Estado a adjudicar, esse limite seria de 144.000 euros.
Este primeiro contrato do Verão passado, assinado ainda no tempo de Fernando Medina como presidente da autarquia de Lisboa, esteve também em vigor durante 123 dias – entre 19 de Julho e 18 de Novembro de 2021 –, e o PÁGINA UM apurou que consistiu, em geral, no fornecimento de uma simples maçã, um pacote de água em cartão complexo e, por vezes, um mini-pacote de bolachas maria, acondicionado num saco de papel kraft.
Note-se que, neste período, a afluência de utentes para vacinação foi incomensuravelmente superior, mas como se ignora o teor de ambos os contratos, não se sabe quantos kits alimentares foram fornecidos em 2021. E muito menos se sabe quantos kits se prevêem distribuir agora que quase não há pessoas a vacinarem-se em Lisboa. E nem se sabe se haverá, para atrair mais visitantes, uma melhoria nos acepipes a oferecer.
Apenas se sabe uma coisa: a Albisabores vai sacar da autarquia de Carlos Moedas cerca de 1.760 euros por dia. Todos os dias até ao próximo dia 12 de Julho. Ainda são, até lá, mais 78 dias. Sempre a facturar.