Mobi Summit: as promiscuidades dos "media partner"

Global Media recebe 600 mil euros em quatro anos para mediatizar evento da câmara de Cascais… com direito a exclusivo do ministro do Ambiente

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A polémica estalou quando se soube que o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, recusou falar com jornalistas alegando que tinha um “exclusivo” com a Global Media, o media partner do Mobi Summit, que se realizou na semana passada. Mas por detrás destas parcerias mediáticas há todo um mundo de promiscuidades, com a mediatização a ser paga a preço de ouro, com garantia de ser favorável, e escrita por jornalistas que saltitam impunemente entre a imprensa e a comunicação empresarial. O PÁGINA UM escalpeliza os meandros do Mobi Summit, onde nem sequer falta um “curador editorial” para filtrar a “informação” que deve sair como “notícias”.


A Global Media já recebeu 600 mil euros desde 2019 de uma empresa municipal de Cascais para promover o Mobi Summit, um evento anual sobre mobilidade. Além da choruda verba, os jornais daquele grupo empresarial – Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo – conseguiram exclusivos com os participantes, incluindo até o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro.

A polémica estalou na semana passada, quando jornalistas de outros órgãos de comunicação social não conseguiram chegar à fala com Duarte Cordeiro quando este participou naquele evento na quarta-feira passada. O ministro alegou que “apenas fazia declarações aos media partners” do Mobi Summit. O ministro, no início do seu discurso, fez uma saudação específica ao chairman da Global Media, Marco Galinha, logo após ter cumprimentado os presidentes das Câmaras Municipais de Cascais e Lisboa, Carlos Carreiras e Carlos Moedas, formalmente os organizadores deste evento.

Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, alegou ter exclusivo com os órgãos de comunicação social da Global Media para recusar prestar declarações aos outros jornalistas após a sua apresentação na Mobi Summit.

A postura do governante levou esta sexta-feira a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas a emitir um comunicado sobre “parcerias mediáticas” onde salienta que “a confirmarem-se as queixas e também as notícias, entretanto veiculadas por alguns órgãos de informação, dando conta do ocorrido, este caso configura um grave atentado à liberdade de imprensa e ao dever de equidade dos responsáveis governamentais para com todos órgãos de informação jornalísticos.”

Apesar desta posição crítica da CCPJ – que também relembra no seu comunicado que “o jornalismo patrocinado, ou seja, trabalho que é executado em troca de um patrocínio comercial ou de qualquer outra forma de pagamento, é expressamente proibido pelo Estatuto do Jornalista” – esta entidade tem sido bastante branda em termos práticos.

A CCPJ não tem, aliás, agido sobre diversas revelações do PÁGINA UM sobre as promiscuidade nos contratos entre grupos de media e entidades públicas ou privadas (incluindo farmacêuticas), onde jornalistas surgem a executar acções de marketing. E mesmo “compra” de entrevistas ou a produção de revistas corporativas por jornalistas. Há mesmo jornalistas que se assumem como partners de empresas de comunicação empresarial, escrevendo notícias e conteúdos pagos em simultâneo para os mesmos jornais, não ficando clara a distinção para os leitores.

A Mad Brain, gerida pelos jornalistas Fátima Ferrão (CP 6197) e Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706), é um dos casos mais emblemáticos, sem intervenção da CCPJ. Estes jornalistas escrevem, de forma despudorada, tanto notícias como conteúdos comerciais, sobretudo para publicações da Global Media e Impresa (jornal Expresso), produzindo em simultâneo a revista Energiser, da Galp.

Marco Galinha, chairman da Global Media, durante a sua apresentação no Mobi Summit.

O PÁGINA UM tentou, aliás, saber em concreto, sobre a participação do director do Público, Manuel Carvalho, se a CCPJ tinha já concluído um processo de averiguações que garantira ter iniciado em Dezembro do ano passado, mas a entidade agora liderada pela jurista Licínia Girão tem recusado dar quaisquer informações.

Na verdade, como o PÁGINA UM tem vindo a revelar, mais do que a obtenção de exclusivos com os participantes de eventos com “parceria mediáticas”, é a promiscuidade entre jornalismo e marketing que mais choca. Ou seja, além de “prostituir” o jornalismo – que não pode, por lei, fazer acções de comunicação empresarial ou de marketing –, a media partner pode passar a constituir, se envolver comparticipação económica relevante, a forma mais eficaz de uma entidade comprar cobertura mediática especializada, dócil e orientada. Além disso, criando uma dependência económica, a independência de um órgão de comunicação social arrisca a estar em causa para não se perder um futuro patrocinador.

Cobertura mediática do evento, com garantia de entrevistas aos participantes, foi um exclusivo dos órgãos de comunicação social da Global Media.

 

O caso da promoção e cobertura mediática da Mobi Summit – que vai já no quarto ano de organização pela Global Media, com uma contrapartida de 150.000 euros por ano – é um dos casos mais paradigmáticos da promiscuidade entre grupos empresariais e imprensa mainstream, envolvendo jornalistas com carteira profissional, que ora escrevem para as plataformas de comunicação do evento quer para o próprio jornal que integra os media partners.

Jornalistas a exercerem esta dupla função encontram-se vários na última edição do Mobi Summit. O PÁGINA UM detectou quatro jornalistas em funções à margem da lei. Rute Coelho (CP 1893) é o caso mais evidente, pela quantidade de textos similares que foram publicados tanto no Diário de Notícias como no site do Portugal Mobi Summit.

Esta jornalista, com mais de 20 anos de experiência, é também, aliás, um dos casos evidentes de “mercantilização” do jornalismo, impedido por lei, uma vez que oferece serviços de relações públicas e consultoria em marketing no LinkedIn.

Embora Rute Coelho assuma a autoria de diversos artigos de cobertura do Mobi Summit onde as fronteiras entre jornalismo e marketing são muito fluídas, a esmagadora maioria dos textos no site do evento e nos jornais da Global Media não estão assinados, embora seja facilmente identificável um estilo jornalístico. Se foram escritos por jornalistas sob anonimato – como muitas vezes sucede – ou por antigos jornalistas ou por pessoas sem ligação à imprensa, ignora-se.

Em todo o caso, ao longo dos dois dias deste evento – pomposamente denominado Grande Cimeira do Portugal Mobi Summit –, a cobertura mediática foi também feita, assumidamente, pelas jornalistas Elisabete Silva (CP 4391), Ana Meireles (CP 2808) e Carla Aguiar (CP 739), que foi a autora da peça sobre a intervenção do ministro Duarte Cordeiro. Esta jornalista do Jornal de Notícias fez também pelo menos uma entrevista a um participante do Mobi Summit antes da realização do evento.

A profunda envolvência directa da Global Media neste evento, usando jornalistas para funções de comunicação de marketing, ficou também no destaque dado a Marco Galinha, chairman deste grupo de comunicação social. Foi ele, aliás, quem deu “o pontapé de saída da edição deste ano do Portugal Mobi Summit”, conforme consta do próprio site produzido por “jornalistas da casa”.

Produção de contéudos sem fronteiras entre jornalismo e comunicação empresarial, incluindo a oferta de serviços de relações públicas por jornalistas, é cada vez mais frequente, sem que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tome medidas efectivas. Já nem sequer as ofertas são feitas de forma discreta.

O resumo da participação de Marco Galinha acabou publicado no Diário de Notícias no passado dia 28 de Setembro, sem assinatura do autor, mas no site do evento o mesmo texto aparece como sendo da autoria da jornalista Ana Meireles.

A participação activa de responsáveis editoriais das publicações do grupo liderado por Marco Galinha também se destacou no Mobi Summit.

Quase todos os debates foram moderados por directores das publicações da Global Media, demonstrando a forte ingerência de jornalista num evento comunicacional. Com efeito, Rosália Amorim (directora do Diário de Notícias, CP 1788), Joana Petiz (directora-adjunta do Diário de Notícias e directora do Dinheiro Vivo, CP 4449) e Pedro Cruz (director executivo da TSF, CP 1611) moderaram três debates, cada um. Pedro Ivo Carvalho, director-adjunto do Jornal de Notícias, CP 3104) moderou dois e Jorge Flores (editor executivo do Motor 24, sem registo de carteira profissional) um.

Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias, é habitué na moderação de eventos comerciais onde a Global Media é media partner. No Mobi Summit moderou três debates em dois dias.

Além destas participações, a Global Media montou uma forte cobertura comunicacional, incluindo a emissão integral das intervenções de todos os participantes através da TSF.

Na verdade, a cobertura do evento acabou por ser coordenada não pelas editorias dos órgãos de comunicação social da Global Media, mas sim por Paulo Tavares, denominado “curador editorial” do Portugal Mobi Summit 2022. Embora se assuma ainda como jornalista na rede LinkedIn, Paulo Tavares é, desde Fevereiro do ano passado, consultor de comunicação e marketing. No jornalismo teve uma longa passagem, a partir de 1993, na TSF, tendo depois transitado para o Diário de Notícias, onde chegou a ser director-adjunto entre Setembro de 2016 e Agosto de 2018.

Em termos concretos, como nem sequer existe a figura de “curador editorial” na Lei da Imprensa, e não sendo Paulo Tavares agora jornalista, aquele cargo revela sobretudo que as notícias “vazadas” para os órgãos de comunicação social da Global Media durante o Mobi Summit foram decididas e “filtradas” previamente sem um independente controlo editorial.

Paulo Tavares, antigo jornalista, foi nomeado “curador editorial” do Mobi Summit. Esta função não existe na Lei da Imprensa nem os jornalistas podem estar sob a alçada de pessoas sem carteira profissional de jornalista ou equiparado.

Pelos “serviços de mediatização” da edição deste ano do Mobi Summit, a Global Media recebeu 150.000 euros, em contrato assinado em Junho passado com a Cascais Próxima, uma empresa municipal daquela vila, constando no Portal Base, mas sem o caderno de encargos.

Este contrato veio no seguimento de outro, assinado em Maio de 2019, no valor de 450.000 euros, mas para a organização e promoção mediática do Mobi Summit para três anos. Nenhum destes contratos foi alvo de concurso público. A autarquia de Cascais decidiu sempre por ajuste directo. O evento contou ainda com os patrocínios da EDP, Brisa, Fidelidade e Lidl.

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