VISTO DE FORA

O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia

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por Tiago Franco // Fevereiro 2, 2023


Categoria: Opinião

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Gosto de Mariana Mortágua. É para mim a melhor e mais bem preparada dirigente do Bloco de Esquerda. Raramente diz coisas com que discordo largamente, mas, quando assim sucede, é com estrondo e a várias milhas náuticas ao lado.

Com a falta de casas e o problema das rendas elevadas, Mortágua veio então achar que uma boa solução seria obrigar os senhorios a arrendarem e, não satisfeita, propôs a colocação de um tecto máximo no valor mensal. Segundo ela, o direito à habitação tem de ser mais importante do que o direito à propriedade.

Mariana Mortágua

Vejo vários problemas nesta proposta, embora, de facto, concorde que o direito à habitação deva ser prioritário relativamente à propriedade. O primeiro obstáculo que me ocorre é este: um senhorio vê a prestação do banco subir por causa das taxas de juro e, com algum jeito, fica com uma renda alta, faraónica e quase incomportável. Se o tecto for inferior a esse valor tem, ainda assim, de alugar a casa e pagar para alguém lá viver?

Depois, como é que se permite o direito à propriedade privada, mas se diz às pessoas o que fazer com ela? Não faz muito sentido. Eu sei que a Mariana Mortágua não tem responsabilidades de governação, mas isto parece uma forma de colocar o contribuinte a resolver os problemas do Estado. E a forma de os obrigar é com um agravamento fiscal qualquer?

Depois de impostos de selo, IMT, IMI e todas as taxas e taxinhas que cobram a quem compra uma casa, ainda se sacava mais qualquer coisa? É, de facto, de bradar aos céus imaginar que a classe média-baixa, a tal que compra uma casa, ainda tem alguma coisa no bolso para ser sugado.

Se esta sugestão passasse a lei, emigrantes como eu, que vivem entre dois países, teriam de passar a acampar ou comprar anuidades em hotéis.

O Governo que andou a distribuir vistos gold e a contribuir para os preços absurdos da habitação ou até a autorizar alojamentos locais em cada esquina, contribuindo para a voracidade do lucro fácil e mais famílias na rua, podia e devia ter antecipado esta situação. Não acordámos em 2023 com rendas elevadas e uma bolha imobiliária formada pela especulação. Há pelo menos uma década que andamos a ver isto.

Aquilo que poderia então a camarada Mariana sugerir em vez de querer decidir sobre a propriedade alheia? Podia, por exemplo, elaborar uma lei que impedisse que uma só pessoa tivesse várias casas e vivesse de rendas. Não é nada original, já existe há décadas na Suécia e foi uma das formas de combater a falta de habitação. Por estes lados, uma pessoa não pode manter mais do que uma casa numa cooperativa de habitação. Em caso de mudança de morada tem até dois anos para se libertar da casa anterior. Se fosse o PCP a sugerir algo do género seria uma medida estalinista; sendo uma prática de “louros”, deduzo que já não choque ninguém. A mim pelo menos não incomoda e, de facto, liberta mais casas para o mercado. E com mais casas disponíveis, lá está, os preços baixam. Ou não sobem tanto, vá.

Esta parece-me ser uma forma perfeitamente legítima de limitar o direito à propriedade com a qual concordo. Precisamos de uma casa para viver; não precisamos de várias para lucrar.  

Outra ideia para a Mariana seria, de facto, copiar a solução das cooperativas de habitação. Uma vez mais recorrendo ao exemplo escandinavo (não gosto de o fazer mas é tão óbvio que tenho mesmo de o usar), conto uma história do século passado: quando os suecos perceberam que não havia casa para todos (o que neste fim de mundo gelado é um problema), criaram cooperativas de habitação. Dali resultaram casas simples, de linhas direitas, em quantidade suficiente para a população. Foi uma opção política. Casas em vez de estradas.

Como tudo na vida, o dinheiro não estica. Volto ao mesmo. Em Portugal multiplicámos PPPs, Salgados e Ferreiras do Amaral. Na Suécia construíram-se casas, escolas e hospitais. Opções. Sempre opções. A intenção foi boa, as pessoas passaram a ter um tecto decente (a especulação depois rebentou com os preços mas é uma história para outro dia).

Ora… Portugal podia fazer o mesmo. Menos web summits, menos jornadas do Papa, menos resgates ao BES e menos apoios ao Mário Ferreira. Mais casas simples, de linhas rectas, com janelas grandes e chão revestido a madeira para evitar o frio.

Opções políticas; daquelas que já deviam ter sido tomadas quando o Cavaco começou a sonhar com auto-estradas; daquelas que a Mariana, hoje, com 40 anos de atraso, devia pensar e levar à Assembleia da República, em vez de vir apertar quem já está cheio de nódoas negras.

Nota final: Entretanto, por “necessidade de orientação”, quis testar a ferramenta da moda, o ChatGPT, perguntando-lhe directamente: “A deputada Mariana Mortágua tem razão quando defende que os senhorios deveriam ser obrigados a arrendar as suas casas?

A resposta veio pronta:

Como modelo linguístico IA da OpenAI, não tenho opiniões pessoais. Cabe aos legisladores e à sociedade decidir sobre questões legais e éticas, como essa. No entanto, pode-se argumentar que, em um mercado de aluguel [o ChatGPT aparentemente escreve em português do Brasil], a obrigação de arrendar casas por parte dos senhorios pode resultar em uma distribuição mais equitativa do acesso à habitação e ajudar a reduzir a crise habitacional em algumas regiões. No entanto, também pode ser argumentado que tal medida restringe a liberdade do proprietário e pode desincentivar a construção de novas casas. É importante levar em conta as perspectivas econômicas, sociais e legais ao debater essa questão“.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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