Oleksandra Matviichuk, advogada e activista ucraniana

‘Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade’

por Boštjan Videmšek // Outubro 5, 2023


Categoria: Entrevista P1

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Há um ano, o Centro para as Liberdades Civis em Kiev foi um dos três galardoados com o Prémio Nobel da Paz, juntamente com o bielorrusso Ales Bialiatski e a International Memorial Board, uma associação russa. A advogada Oleksandra Matviychuk é, aos 39 anos, o rosto desta organização ucraniana que ajudou a fundar em 2007 para lutar pela democracia no seu país. Quase 20 meses depois da invasão da Rússia, a activista dos direitos humanos conversa com o jornalista Boštjan Videmšek numa entrevista publicada em simultâneo no PÁGINA UM e no jornal esloveno DELO.


Recentemente, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia expressaram o seu apoio conjunto à Ucrânia em Kiev. O mesmo se pode dizer de uma reunião em Varsóvia, à qual assistiu. Sente que este apoio é sincero, forte, unido, suficiente? Ou sente que talvez já exista um cansaço na comunidade internacional?

Apesar de a guerra já durar há quase vinte meses, o foco da comunidade internacional continua na Ucrânia. Isso é lógico. Agora, os ucranianos não estão apenas a lutar por nós próprios, mas também pelos outros. Estamos a assistir ao desmantelamento da Ordem Mundial que foi criada após a Segunda Guerra Mundial.

Foto: Center for Civil Liberties

Neste momento, por parte dos seus aliados, o que é que a Ucrânia precisa mais – e sente falta?

Quando a grande ofensiva russa começou em Fevereiro passado, o Mundo reagiu com a ideia de que a Ucrânia não deve cair. Como resultado disso, começou a receber os primeiros carregamentos de armas, enquanto as primeiras sanções sérias foram impostas contra a Rússia pela comunidade internacional, pelas quais estamos, naturalmente, muito gratos. Tudo isto permitiu-nos resistir à invasão russa em larga escala. Mas agora chegou a hora de mudar essa narrativa: vamos ajudar a Ucrânia a vencer rapidamente. Há uma enorme diferença entre estas duas abordagens – a Ucrânia não deve cair e a Ucrânia tem de ganhar rapidamente. E é uma diferença que pode ser medida na prática. O tipo de arma, a rapidez da tomada de decisões e a severidade das sanções e muitos outros factores são decisivos. O problema é que nós, ucranianos, não temos tempo. O tempo, na Ucrânia, traduz-se em muitas vidas humanas perdidas nos campos de batalha, no interior e nos territórios ocupados.

A maioria dos meus amigos e conhecidos ucranianos estão exaustos, cansados, traumatizados. Por causa da Guerra e da insegurança, porque foram ‘arrancados’ das suas vidas. Como é que se sente? Onde encontra forças para continuar, para lutar constantemente no campo civil?

É difícil viver numa altura em que há uma grande guerra. O meu humor muda constantemente; para cima e para baixo, e para cima e para baixo. Vivemos em completa incerteza. Perdemos completamente o controlo sobre as nossas vidas. Não podemos planear nada, nem mesmo no dia seguinte, nem na hora seguinte! Um novo ataque russo pode acontecer a qualquer momento. Isso também significa que estamos constantemente receosos pelos nossos entes queridos, amigos e conhecidos – especialmente aqueles que se juntaram às forças armadas ucranianas ou vivem nos territórios ocupados. Ou em qualquer outro lugar do país. Nenhum lugar da Ucrânia está a salvo das bombas russas. Esta é a nossa realidade. Aquilo que me ajuda, e a muitas pessoas que conheço, para continuar a nossa luta e os nossos esforços, são duas coisas. A primeira é o nosso objectivo comum; lutamos pela liberdade. Pela liberdade em todos os níveis possíveis. Porque queremos ser um país livre e independente, não uma colónia russa. Pela liberdade de sermos ucranianos e de não apagarmos a nossa identidade e nos tornarmos russos à força. Pela liberdade das nossas decisões democráticas e de construir um país onde os direitos de todos sejam respeitados, um país onde as autoridades sejam responsáveis perante o povo, onde o poder judicial seja independente e onde a polícia não seja violenta para com os manifestantes.

Foto: Right Livelihood

A coisa que me faz continuar – e que nos faz continuar – é o desejo de ser um exemplo para os outros. Não desejo que nenhum país ou nação passe pela nossa experiência, mas estes tempos dramáticos deram-nos a oportunidade de trazer à tona o melhor de nós: que somos corajosos, lutamos pela liberdade, tomamos decisões difíceis, mas correctas, e que nos ajudamos uns aos outros. Somente através da ajuda mútua podemos experienciar aquilo que um ser humano realmente é. Um exemplo: quando a invasão russa em larga escala começou, as organizações internacionais evacuaram os seus cidadãos da Ucrânia, mas as pessoas comuns permaneceram. E as pessoas comuns começaram a fazer coisas extraordinárias. Pessoas comuns resgataram pessoas comuns de cidades atacadas. As pessoas comuns romperam bloqueios e cordões para fornecer ajuda humanitária. Pessoas comuns sobreviveram sob constantes ataques de artilharia. E também sobreviveram ao último Inverno, quando a Rússia estava deliberadamente a destruir o sistema energético ucraniano. Eu também passei algum tempo em Kiev num apartamento sem água, electricidade, Internet, conexão móvel e aquecimento. Isto uniu ainda mais as pessoas comuns e inspirou-as a continuar a fazer coisas extraordinárias. É assim que lutamos contra a dor e o desespero.

Então concorda que o tecido social ucraniano ficou muito fortalecido durante a guerra, que está mais forte do que nunca?

É difícil dizer que está mais forte do que nunca, mas está extremamente forte. Dito de outra forma: não temos outra escolha. Nunca nos renderemos. Nunca desistiremos. Não nos tornaremos escravos russos. Se pararmos de lutar, nós, ucranianos, desapareceremos. Esta guerra tem um carácter genocida. Os russos estão a tentar destruir a nossa identidade. Não há existência sem luta.

Foto: Right Livelihood

Afirmou recentemente que a vitória ucraniana não significa apenas a expulsão do exército russo do território da Ucrânia, o restabelecimento da ordem internacional e a libertação das pessoas que vivem nos territórios ocupados. A vitória, disse, significa também uma transição democrática bem sucedida. Como consegui-lo?

Queremos construir instituições democráticas funcionais, eficientes e sustentáveis. Isso cumpriria a vontade de milhões de pessoas que arriscaram as suas vidas há nove anos, durante a revolução da dignidade e os protestos contra o regime corrupto. Nessa altura, quando se perguntava às pessoas nas ruas por que razão protestavam a favor da visão europeia da Ucrânia, elas ainda não conheciam a estrutura e o funcionamento das instituições europeias. Ainda hoje, o cidadão comum não sabe como funcionam o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu. Naquela época – e até hoje –, a escolha era sobre valores. As pessoas gostariam de viver no seu próprio país, que elas próprias construiriam. E onde as regras são as mesmas e completamente claras para todos. Onde o Governo não dita em quem o povo deve acreditar, e quem deve amar, e por aquilo que deve viver ou pelo que deve morrer… Queremos viver em liberdade. Queremos ser devolvidos à civilização europeia. Portanto, a escolha é uma escolha de valores. E é por isso que Vladimir Putin iniciou esta guerra, que não começou em 24 de Fevereiro de 2022, mas oito anos antes, quando o povo ucraniano conseguiu derrubar um regime autoritário, dando-nos a possibilidade de uma transição democrática. Putin queria evitar que isso acontecesse. Foi por isso que lançou uma agressão, ocupou a Crimeia e uma grande parte do Donbass e, em Fevereiro do ano passado, lançou uma grande invasão. Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade.

Foto: Right Livelihood

Será a Ucrânia também uma vítima de estruturas internacionais extremamente débeis – lideradas pelas Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, este fóssil vivo que, com a sua (in)ação, permite todas as guerras modernas?

Vou ser honesta. O sistema internacional de garantia da paz e da segurança não funciona. As pessoas na Síria, Sudão, Somália, Afeganistão, Iraque e Ucrânia sabem disso muito bem. Mas agora estão a tornar-se perceptíveis mesmo para as pessoas nas sociedades democráticas desenvolvidas. Precisamos de uma reforma fundamental e abrangente do sistema das Nações Unidas. Ouvimos recentemente uma proposta do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para aumentar o número de membros permanentes do Conselho de Segurança. Mas esta não é uma reforma cardinal. Precisamos de uma abordagem totalmente nova. Um sistema completamente novo de garantia internacional da paz e da segurança, que não estará ligado ao Produto Interno Bruto (PIB) nem à dimensão geográfica dos membros do Conselho de Segurança. Deve estar vinculada pelo respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades.

Oleksandra Matviychuk em Dezembro do ano passado, enquanto discursava em Oslo, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz.

Não há absolutamente nenhuma indicação de que a Rússia esteja a considerar pôr fim à sua agressão na Ucrânia. Muito pelo contrário. Parece que as consequências da guerra colonial-imperial para Moscovo não são tão graves como se poderia pensar que seriam. Como parar então a Rússia?

O que precisamos para ganhar, é o que me pergunta? Os resultados das guerras não são decididos nas fronteiras nacionais. Não é apenas uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, entre dois países; é uma guerra entre dois sistemas. Entre o totalitarismo e a democracia. Putin não vai parar. Putin tem de ser travado. Se não for parado na Ucrânia, irá continuar. A Rússia é um império que tem o seu centro, mas sem fronteiras. Se um império tiver energia suficiente disponível, irá sempre expandir-se. Para travar a expansão deste império, muitos países, e não só a Ucrânia, precisam de sair da sua zona de conforto. Sim, estamos gratos pelas armas e pela ajuda financeira à economia ucraniana, mas a Rússia está a preparar-se para uma guerra prolongada. Esta guerra já mudou o quadro social da Rússia. Por conseguinte, todo o mundo democrático tem de fazer mais para contrariar este cenário russo. Ninguém quer uma guerra longa. Nós, ucranianos, queremos paz.

Foto: Right Livelihood

Está muito envolvida na documentação dos crimes de guerra russos. Como punir a Rússia por todos os crimes de guerra?

Quando falamos de justiça, estamos a falar das condições prévias para a paz em toda a região. Os militares russos cometeram crimes horríveis. Não só na Ucrânia. Ainda antes, na Chechénia, na Geórgia, … Também na Síria, no Mali e na Líbia. Nunca foram processados ou punidos. Por isso, começaram a acreditar que podem fazer o que quiserem de impune. Por conseguinte, é necessária a criação de um tribunal especial para a agressão russa; que Putin, toda a liderança política e comando militar russo sejam responsabilizados pelo planeamento, início e execução desta guerra. Documentámos um grande número de crimes: assassinatos planeados, tortura, violações, raptos, bombardeamentos selectivos de zonas residenciais… Tudo isto é o resultado da decisão da liderança russa em iniciar uma guerra. Por isso digo que, se queremos paz, a primeira condição é a justiça. Com uma acção tão decisiva, poderíamos evitar novos ataques russos e quebrar o ciclo vicioso da impunidade.

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