Diana Cruz, psicóloga clínica

‘No início, as relações tóxicas são muito facilmente confundidas com amor’

por Maria Afonso Peixoto // Outubro 15, 2023


Categoria: Entrevista P1

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Poderá existir amor verdadeiro num relacionamento tóxico? Infelizmente, não. Nas relações onde o desrespeito pelo outro e o “terrorismo emocional” são uma constante, o que se desenvolve é um vínculo patológico quem o diz é Diana Cruz, psicóloga clínica doutorada em Psicologia Clínica da Família e autora de Não é amor, é uma relação tóxica, editado pela Manuscrito. A terapeuta vê como necessário esclarecer que o amor dá trabalho, mas “não deve doer”. Reconhecendo que também os homens podem ser vítimas de relações tóxicas fala, neste livro, sobretudo para as mulheres que sofrem abusos emocionais pelos seus companheiros, dando-lhes a mão no caminho para romper com a toxicidade e, claro, com o parceiro. A “desintoxicação” implica enfrentar muitos obstáculos, mas a psicóloga assegura que é possível sair da ‘teia’. Ao PÁGINA UM, explicou quais são as principais características destes relacionamentos, que podem ser verdadeiramente traumáticos – e que se desenvolvem também entre familiares, amigos ou até colegas de trabalho –, e como as ideias erróneas que ainda prevalecem sobre o amor não ajudam as vítimas a perceber que “caíram” numa relação tóxica.


No seu livro Não é amor, é uma relação tóxica, afirma que não há dois relacionamentos tóxicos similares. Sendo assim, quais são as principais características que os definem?

Há várias características muito comuns destas relações, e penso que nos devemos focar em duas ou três, provavelmente mais importantes, e que devem ser identificadas o quanto antes. Primeiro, são relações prejudiciais, em que há uma enorme falta de empatia e um desrespeito pelas necessidades e pelos limites da outra pessoa. Há, também, uma instrumentalização do outro. Ou seja, para o ‘parceiro tóxico’, a outra pessoa é mesmo como um instrumento, alguém que está ali para corresponder ao que ele precisa e às suas exigências, e para regular as suas emoções. São relações que não deixam espaço para os dois elementos, porque há um que é dominante e tem o espaço todo na relação. No fundo, é quem dita as regras. E depois há o outro elemento que está na relação com muito pouco espaço para a sua liberdade individual, e está sempre na expectativa de providenciar tudo o que seja pedido pelo parceiro tóxico – sejam coisas materiais, atenção, sexo, o que for.

No entanto, nestas relações, criam-se também dinâmicas que podem facilmente ser confundidas com actos de amor, mas que não o são, na verdade…

Sim, é isso que torna estas relações tão prejudiciais. No início, elas são muito facilmente confundidas com amor porque, numa primeira impressão, há uma intensidade de afectos muito grande. Há um período de sedução, que é muito forte e intenso, na primeira fase da relação, em que o parceiro tóxico aprende tudo sobre a outra pessoa – regra real, estes parceiros são extremamente inteligentes e capazes de o fazer e, portanto, têm uma capacidade enorme de ir ao encontro daquilo que nós queremos ouvir: seja os nossos interesses e objectivos de vida, o que gostamos e não gostamos. Portanto, cria-se uma intensidade afectiva e um vínculo que é quase instantâneo. É um vínculo patológico, mas é quase instantâneo, e que gera aquela sensação de “encontrei a minha alma gémea”, “é tudo o que eu sempre sonhei”. E só o facto de sentirmos isto já é uma alavanca para uma união, e para um vínculo muito forte. E, claro, este é um dos grandes poderes da relação tóxica, porque nós ainda estamos muito habituados a querer isso: a ideia de esperar pela cara-metade, a pessoa que encaixa perfeitamente em nós – quando, na realidade ninguém pode encaixar perfeitamente em ninguém e não há nada de errado nisso; pelo contrário.

Também é comum, por exemplo, confundir-se ciúmes excessivos com amor.

Sim; aí, acho que há vários sinais. Ainda recentemente, quando fui ao programa Curto Circuito, dei alguns exemplos que acho que acontecem nas relações de todas as idades, mas sobretudo com os mais novos, porque há uma partilha menor; por geralmente não viverem ainda juntos. Mas as pessoas pensam: se tem ciúmes é porque se importa muito comigo e não me quer perder, gosta de mim. Entretanto, surgem uma série de outras coisas: se comenta a roupa que eu visto é por causa do ciúme; é por causa do ciúme – ou seja, do “amor” – que ele me diz um colega de trabalho está a “dar em cima” de mim, e que é melhor afastar-me…  É por causa do amor que não quer que eu siga esta ou aquela pessoa nas redes sociais… Sim, porque as redes sociais, nestas relações, também são “invadidas”; tudo é. E hoje, as redes sociais são uma parcela das relações interpessoais muito grande, como sabemos.

E, portanto, é aquela convicção que foi criada na tal fase de sedução, de que somos feitos um para o outro e não nos podemos perder, em que o parceiro tóxico aprendeu tudo e mimetizou tudo o que a outra pessoa quer ouvir, que justifica aguentar todas estas coisas. A maioria de nós, quando estamos de fora, e se pudéssemos pensar bem quando estamos dentro da relação, perceberíamos que esta pessoa está a limitar com quem eu falo e quando falo, o que visto, onde vou. Portanto, está a limitar a minha liberdade individual, e não está a confiar em mim. Está só a isolar-me cada vez mais, até que a certa altura – e isso é uma coisa que acontece muito e é uma característica muito pesada destas relações –, há uma espécie de uma bolha, um isolamento muito grande, que pode até incluir os familiares. E esse afastamento contribui ainda mais para que aquela relação pareça tão importante – a certa altura, não há mesmo mais ninguém. Ela é importante porque o desamparo é gigante, e esse desamparo foi criado pela própria relação. O parceiro tóxico convence a outra pessoa que quem está ao seu redor não lhe quer bem, recorrendo muito à crítica e à desqualificação, e dizendo coisas como “tu não percebes nada”, “toda a gente te engana”… E todas estas características se enredam umas nas outras e transformam estas relações num ‘novelo’ do qual é mesmo muito difícil sair.

Como referiu, há traços transversais nos comportamentos de um parceiro tóxico, mas não é possível reduzir estas pessoas a um único perfil; podem existir diversos tipos de personalidade tóxicas, certo?

Sim, estas pessoas geralmente são muito egocêntricas, muito centradas em si próprias e nas suas necessidades, no que querem para si e no que pretendem dos outros e da vida. Lá está: como disse ao início, pessoas que têm muito pouca empatia; não têm grande preocupação com o impacto que as suas acções têm nos outros e com a dor que possam provocar – pelo contrário, mesmo com a outra pessoa a explicar imensas vezes ao parceiro que o seu comportamento a faz sentir-se ofendida ou humilhada, ele torna a fazer, se for preciso, no próprio dia.  

Pode dizer-se que são narcisistas?

Podem ser verdadeiros narcisistas, pessoas que não estão nada preocupadas com o outro. Também são pessoas muito imaturas emocionalmente – uma característica muito típica das personalidades narcisistas. No fundo, são um bocado como uma criança grande. As crianças estão muito centradas nas suas coisas, mas é natural, porque são crianças. Mesmo assim, uma criança conhece empatia; com os outros miúdos, com os animais… Mas estas pessoas tóxicas acreditam que não têm de dar, só de receber, e emocionalmente são muito instáveis, frustram-se e irritam-se facilmente. Estão perfeitamente convencidos que há um sistema de regras que são só deles; há as regras para nós seguirmos, mas eles não têm de as seguir; têm as suas próprias regras, que os próprios fazem. O exemplo das redes sociais que já referi é típico: ele pode definir com quem é que eu falo, mas eu não posso fazer o mesmo. Enfim, têm esta expectativa de que o outro está ao serviço. Neste caso, geralmente, são mais os homens que têm estas características.

É por isso que dedica este livro às mulheres?

Sim, eu quis mesmo que fosse um livro de mulher para mulheres, que é uma coisa que está a ficar fora moda e que é delicado de se fazer agora. Mas acredito que é um livro que pode ser lido, igualmente, por homens – mesmo que aqui eu esteja a falar para as mulheres, se ele for vítima de uma relação tóxica, vai fazer-lhe sentido. E já tive feedback de alguns homens, mesmo em pouco tempo, o que é muito curioso. Também tenho recebido muitas mensagens de amigas de mulheres que estão nestas relações, e que dizem que não sabem mais o que fazer para as ajudar. Então, este é um livro de mulher para mulheres, mas isto não é dizer que não há homens a viver relações tóxicas. Claro que há, tal como há nas relações homossexuais também. Na verdade, em qualquer tipo de relação, incluindo entre pais e filhos; há mães e pais tóxicos, chefes tóxicos e amigos tóxicos. Claro que, depois, a natureza da relação muda um bocadinho e a forma como tudo se manifesta. Mas não é muito diferente, porque estão lá as características que falámos inicialmente, aqueles sinais para vermos se estamos numa relação tóxica, o desrespeito pelo outro e pelos seus limites. Também me dirijo sobretudo às mulheres porque é o que há mais e porque é o que a minha experiência conhece melhor; são elas quem mais vem ao consultório pedir este tipo de ajuda.

E de acordo com a sua experiência, que características pessoais é que tornam alguém mais susceptível de ser vítima de uma relação tóxica?

É muito difícil falar disto, e mesmo na escrita do livro tive muito cuidado e dei muitas voltas até achar que estava explicado da melhor forma. Porque é muito fácil ler esta entrevista, ou o livro, e pensar que são as mulheres que geram isto, com a sua maneira de ser. Não. Mas, de facto, as relações têm dois lados e há características que tendem mais a entrosar-se com outras.

Ou, por vezes, atribui-se a culpa à vítima por se ter mantido na relação, não é?

Exacto e, portanto, não é dizer que elas têm culpa, mas há de facto características nossas enquanto mulheres que podem facilitar isto. Também é por isso que são mais as mulheres que são vítimas destas relações: porque regra geral, somos mais orientadas para as relações; enquanto os homens mais orientados para os objectivos. É incontornável – cromossomas XX e XY [risos]. Depois, são as mulheres mais empáticas e mais focadas na relação com o outro, ou muito compassivas, compreensivas e que tendem a racionalizar muito as atitudes do parceiro. Então, acreditam que se o amarem e orientarem, ele vai conseguir ser diferente. Regra geral, são as mulheres que têm esta crença de que o amor é uma força bruta de mudança.

Acreditam que conseguem mudar e “salvar” o companheiro?

Sim, no limite, são mulheres que têm um pouco esta “síndrome” de salvadoras, mas antes de chegar a isso, são mulheres mais empáticas, com capacidade de escutar o outro e de entender o outro. E, portanto, vão sempre encontrando algo que justifica aquilo; porque, claro, as dificuldades da história de vida do parceiro existem. Mas não lhes cabe a elas estar a viver toda aquela violência e drama por causa disso. Não todas, mas algumas podem ter uma identidade um pouco frágil, e sentir que parte do seu valor vem das relações que elas têm, e se estão numa relação em que elas contribuem para a felicidade da outra pessoa, têm ainda mais valor. E claro que nós, quando estamos numa relação dita saudável, queremos que a nossa contribuição na relação seja boa e queremos estar ali com a outra pessoa. Mas nós não deixamos de ter valor se não tivermos uma relação, nem quando identificamos algo daquela pessoa que não é da minha conta, e sobre a qual eu não posso fazer nada, nem tenho de fazer nada. As mulheres que têm síndrome de salvadora muitas vezes têm até profissões de ajuda, como a minha. Mas mesmo que não tenham, costumam ser pessoas muito disponíveis para o outro. Também podem ser pessoas que já tiveram relações tóxicas anteriormente e não ficaram bem recuperadas, ou que vêm de famílias muito disfuncionais. Ou podem ainda ser pessoas muito românticas, que acreditam que para ser verdadeiro, o amor tem de doer muito e de passar por muitas provações, com muito sacrifício. Mas não é verdade, porque as relações custam e dão trabalho, mas não são só dor e sacrifício, senão para que queríamos o amor?

E quão fácil, ou difícil, é sair de uma relação tóxica?

É muito difícil. Na minha experiência, as mulheres saem; mas muitas precisam mesmo de ajuda especializada. Depende também das características mais específicas daquela relação e do grau de violência que teve, porque há este terrorismo que destrói completamente a identidade. Eu chamo-lhe “terrorismo emocional”. Nem todas necessitarão de ajuda especializada, mas muitas sim – é muito difícil, porque é uma relação traumática. Todos nós já saímos de uma relação, e é sempre difícil. Mas aqui, não falamos de sair de uma relação dita normal; é toda uma outra situação, devido ao trauma. É uma relação onde a pessoa perdeu o Norte, a noção dos seus objectivos, e passou a fazer uma série de coisas que são contra os seus valores e a suas crenças.

Muitas vezes, a vítima até já nem se reconhece a si mesma no final da relação, como refere também no livro.

Já nem se reconhece, às vezes já nem percebe porque entrou naquela relação, não conhece aquele companheiro, nem sabe como é que a relação chegou ali. Muitas vezes tem vergonha e sensação de culpa, e são emoções que bloqueiam muito a pessoa. Sente culpa, primeiro, porque foi convencida de que a relação estava a correr mal por culpa sua, porque o parceiro o diz. Mas depois, quando as mulheres já perceberam que a relação tem tudo para o correr mal, há muita vergonha porque a maioria permanece durante muito tempo, e às vezes até com várias roturas pelo meio. E esses sentimentos muitas vezes requerem ajuda, e que a pessoa reorganize toda a sua vida. Note-se que esta pessoa provavelmente perdeu os amigos, ou se ainda tem alguns, geralmente não sabem nem da missa a metade, porque tiveram vergonha de contar, ou não o fizeram para proteger o companheiro, ou porque não queriam “ouvir” das amigas. Os familiares, às vezes também já não são tão próximos e não sabem da situação. Também ficam desestruturadas no seu trabalho – não é incomum vermos mulheres que tinham carreiras em franca ascensão, mas que de repente já não produziam aquilo que nas empresas estavam habituadas, ou perderam a confiança para lançar-se num projecto mais desafiante. Algumas são mesmo demovidas pelos parceiros de tentar.

Eles próprios as convencem a não tentar alcançar os seus objectivos.

Sim, porque isso é poder; alimenta a auto-estima, a folha de vencimento. E, portanto, muitas também já não têm a mesma estrutura de trabalho ou o mesmo reconhecimento; as pessoas notam que elas não estão bem, mas mesmo que ninguém note – embora seja difícil –, mas elas já não se sentem capazes, afecta o seu rendimento no trabalho.  Porque depois também não dormem, ficam doentes; começam a surgir uma série de sintomas físicos. Então, quando termina, não é só fazer o luto normal de uma relação e de um amor que não resultou; é o perceber que afinal, não era sequer amor nenhum. Todas as memórias de coisas que foram feitas e ditas de que não nos orgulhamos, a vergonha e toda a estrutura que desapareceu, deixou de fazer coisas de que gostava… Portanto, tem de ser tudo reformulado, recuperado. É às vezes, partindo de uma posição que é mesmo de doença mental, de depressão; a pessoa pode até deixar de comer.

Pode, inclusive, ter sintomas de stress pós-traumático?

Pode ter muitos sintomas que são concordantes com o stress pós-traumático, porque é de facto, uma relação traumática que vem daquele vínculo patológico – sedução “forte e feia” no início, e depois o “terrorismo” e a humilhação. Há muitas vezes um Síndrome de Estocolmo, que é o vínculo raptado pelo raptor. A pessoa sabe que está tudo mal, mas procura o parceiro para a consolar. Há uma incapacidade de afastamento, muito baseada também na ideia de que não há ali mais ninguém, na convicção que os parceiros tóxicos incutem na vítima, de que nunca ninguém a irá amar como ele.

E estas dinâmicas relacionais também têm sempre presente a questão da codependência? Ou não necessariamente?

Sim, no limite, podemos estar a falar de pessoas que têm características de dependência emocional. Ou seja, que têm muito estas necessidades de estar uma relação, e dificuldade em imaginar-se sozinhas. Mas o conceito de codependência é muito conhecido também noutras patologias psiquiátricas e psicológicas. Na codependência, há a ideia de que a própria vítima alimenta a agressão; não conhece outra forma de amor que não seja através da agressão. No estereótipo, é aquela pessoa que provoca o agressor para ele lhe bater; ou a mãe que quer que o filho deixe de consumir tóxicos, mas todos os dias lhe dá dinheiro, e sabe perfeitamente que o dinheiro é para as drogas ou o álcool. A pessoa codependente alimenta, de uma forma muito directa, o comportamento patológico. E é claro que isto eventualmente pode acontecer em algumas relações, mas de um modo geral, não é isso que acontece. Regra geral, stamos a falar de mulheres muito capazes, bonitas, com competências intelectuais acima da média e profissões diferenciadas, perfeitamente independentes; muitas delas, até então, tinham vidas totalmente autónomas, mas que depois são apanhadas nesta narrativa de conto de fadas. E quem é que não quer um? Mas depois há uma derrocada. E os parceiros tóxicos são com frequência também muito sedutores, têm sempre “satélites”, e fazem questão que a pessoa saiba que há mais mulheres que o desejam. Na fase inicial, antes de se aperceberem do tipo de relação, as amigas da vítima também lhe dizem que o parceiro é um “sonho”, e que ela não o pode perder. Coisas desse género.

Os parceiros tóxicos seduzem as pessoas mais próximas da vítima e conquistam a sua simpatia?

Sim, seduzem toda a gente, tornam-se muito próximos dos amigos e da família da vítima, para que toda a gente transmita aquela sensação de que saiu à vítima a sorte grande. “Tu agarra esse homem”…  E isto também vai minando a identidade daquela pessoa, porque com o tempo já não tem certeza de nada, não confia no próprio julgamento. E claro, há o típico gaslighting – em que o parceiro tóxico nega as percepções da vítima, como se ela estivesse só a ver coisas. Ao fim de anos a ouvir isto, a vítima começa a acreditar, e vai-se tornando dependente daquela relação, porque não há mesmo mais nada. E aquela ideia de que é possível estar numa relação diferente e saudável desaparece; a vítima acredita que só pode ter aquilo.

E qual é a melhor forma de evitar cair numa relação destas? Fomentando uma autoestima saudável?

Pois, essa é a pergunta de um milhão. Eu acho que há algumas coisas que são muito importantes. Uma, é a pessoa, de antemão, saber bem quais são os seus limites. Pode-se gostar muito de alguém e amar muito uma pessoa, mas há coisas que não se vão aceitar. E se estes limites estiverem muito bem definidos, já é mais difícil que um comportamento incorrecto do outro não faça soar o alarme. Se aquilo que nós precisamos e que nos traz segurança estiver bem claro, bem como quais são os limites inultrapassáveis, já sentimos o desconforto mais cedo – aquela “bomba de amor” toda logo na fase de sedução já parece desagradável.

E depois, volto a frisar: as nossas ideias sobre o amor; porque é que nós havemos de esperar que uma pessoa goste de tudo que nós gostamos, ou queira tudo o que nós queremos. Isso não existe.  É preciso ter a consciência de que o amor dá trabalho, sim, mas não é sofrido, e os valores de respeito têm de estar acima de tudo. E se a esmola for muito grande, se a pessoa parece tão perfeita que é demasiado bom para ser verdade, se calhar é mesmo. Mas sobretudo, diria que tem muito a ver com os limites, e sim, os limites também têm a ver com a nossa noção de valor. A maioria das pessoas quer muito uma relação, também porque estamos constantemente a ser bombardeados com a mensagem de que isso é importante. E apesar de os tempos estarem muito diferentes, as mulheres ainda estão muito pressionadas para isso, sobretudo nas idades entre os 20, início dos 30 e 40.  Muitas vezes, sentem-se confusas se não estiverem numa relação, e isso aumenta a disponibilidade delas para aceitar ou aguentar certas coisas. Acreditam que depois a relação melhora; e quando começamos nisto, já estamos com os nossos limites expostos, no caminho para uma relação tóxica. Então, pode ser muito importante reconstruir estas crenças sobre o amor e sobre o papel que a pessoa quer ter numa relação.

Este livro incide em particular sobre a “toxicidade” nas relações amorosas mas, como explicou, há relações tóxicas entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. É mais difícil haver um afastamento de familiares tóxicos? Por se tratar de família, a pessoa sente uma culpa maior em romper?

Sim, sendo que a culpa do afastamento existe em todas as relações tóxicas, mesmo com parceiros amorosos. Mas com os familiares, por exemplo um pai ou uma mãe, é mais difícil porque a relação também é de outra natureza; são as pessoas que me criaram e me colocaram no Mundo. Nós não estamos muito preparados para o corte relacional com os pais; acontece, e acontece muito mais do que as pessoas imaginam, haver cortes de relação com os pais. E cada família terá as suas próprias razões, mas é uma coisa sempre vivida de facto com muita culpa. E lá está, também com muita vergonha, porque ninguém diz de ânimo leve que não fala com a mãe ou com o pai há anos – mesmo que sinta que foi uma dor dilacerante que a levou a tal. Mas, todas as relações que parecem mais “obrigatórias”, parece não haver escolha… Porque o namorado pode deixar de ser namorado, mas a minha mãe não vai deixar de ser a minha mãe.

Mãe só há uma, como se costuma dizer.

Exacto. Todas essas relações tornam este afastamento mais difícil, até porque muitas vezes não pode haver um afastamento físico. E com os pais ainda há uma outra coisa: teoricamente, na maioria dos casos, aquelas pessoas criaram-nos, desde o momento “zero”, em que não conhecíamos outra coisa. Então, pode imaginar-se a derrocada de identidade que isso pode fazer – é que nem chega a haver derrocada, porque aquela identidade nunca esteve verdadeiramente livre para se constituir em si mesma, a não ser sobre aquela depressão, agressividade, e peso da pessoa tóxica. E isso é muito penalizador do desenvolvimento dos miúdos, que serão pessoas adultas, e demora muito até que eles percebam que estavam a viver em famílias num clima de verdadeira opressão, violência e de desqualificação total da sua liberdade, e de como foram restringidas no seu crescimento e no seu desenvolvimento. Isto é uma marca muito maior. Todos nós sabemos, por mais saudável que seja nossa família, que trazemos sempre essa história connosco. Porque são aquelas pessoas que estavam lá quando não havia mais nada, houve um momento em que o mundo era só aquilo. Depois, as relações com os chefes, por exemplo, também podem ser muito complicadas, porque às vezes a pessoa não pode simplesmente vir-se embora. Pode sempre sair de um emprego, mas se calhar não pode no momento, ou da maneira que quer. E essa relação também é “obrigatória”, porque pelo menos durante um tempo, até que as coisas mudem, a pessoa está sujeita àquela relação e sabe que todos os dias tem de lidar com isso. E aqui não há tanto a questão da culpa, mas é a sensação de poder que existe. A pessoa sente que o chefe a trata mal, faz-lhe mal, inibe-a na maneira de estar, de ser e de trabalhar. E também cria verdadeiras hecatombes de falta de confiança, em que a pessoa não consegue fazer o seu trabalho. E não pode sair da relação no instante em que quer.

Sim, implica todo um processo.

Sim, nós dizemos que se a pessoa está a sofrer muito, tem de sair. E sim, tem de sair, mas isto é diferente de dizer logo “saia!”. Temos de ser realistas. Não se pode esperar que se diga à pessoa que o seu chefe é um grandessíssimo narcisista, e a pessoa se vá logo despedir e nunca mais volte. E isso pode ser também muito destrutivo; é como se fosse água mole em pedra dura. Mas a água não é assim tão mole, e vai minando, desfazendo, até a pessoa sentir que não tem opções. E isto vale para qualquer uma destas relações.

As últimas três fotografias foram tiradas por Daniela Ventura

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