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A censura legalizada e a distopia

silver bell alarm clock

por Maria Afonso Peixoto // Novembro 29, 2023


Categoria: Opinião

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Ontem de madrugada, noticiava o Público que “Governo e PS querem criminalizar discriminação por convicções políticas”. O jornal referia-se, eufemisticamente, a uma proposta de lei que compreende alterações ao artigo 240º do Código Penal, ao qual se somariam novas adendas para combater o “discurso de ódio”. Esta era já a sexta alteração ao dito artigo, que foi votada esta semana na Assembleia da República. Mas algumas horas mais tarde, pela noitinha, o partido que sustenta o ainda actual Governo deixou cair as referências a ideologias ou instrução.

Em todo o caso, mostra-se evidente que esta retirada foi estratégica, devido à polémica que traria para campanha eleitoral das próximas legislativas, porque a essência manter-se-á. As intenções do Executivo socialista – tituladas como foram pelo sempre amistoso Público – parecem, à primeira vista, muito aceitáveis e até benévolas. Mas o problema surge quando começamos a desmontá-las e a raciocinar sobre as implicações na sua implementação. E na prática, no reino do palpável, despindo-se-lhe o invólucro angelical, percebemos que se trata de uma medida tenebrosa por tão antidemocrática.

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No Código Penal em vigor, o artigo que versa sobre a “Discriminação e incitamento ao ódio e à violência” já estipula uma pena de prisão de até oito anos para actos discriminatórios com base na “raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”. Mas, com esta proposta de lei, a lista de ofensas criminalizáveis passaria também a incluir a discriminação por “convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou a pretexto de uma culpa colectiva baseada em qualquer um destes factores”.

Com critérios tão nebulosos e ambíguos, a pergunta impõe-se: de que modo planearia o Governo fazer cumprir esta medida? Seria aberta uma caixa de Pandora, até porque quem fosse processado por atentar contra “convicções políticas e ideológicas” de uma determinada pessoa ou grupo, também poderia queixar-se de estar a ser discriminado (por o processo judicial ter a intenção de o castigar, ‘discriminando-o’ da sociedade) pelas suas próprias “convicções políticas ou ideológicas”.

Havia ainda um outro aspecto igualmente escabroso: na linha do proposto, quem incorresse nestes “crimes”, poderá ser punido com a interdição de servidores informáticos, sem data limite, para o resto da vida. Ou seja, poderia ver-se privado de usar as plataformas digitais tradicionais com ‘pena perpétua’. Orwelliano quanto baste.

Mas havia mais. O Público revelava, na notícia da madrugada de ontem, que “o texto inicialmente redigido pela Presidência do Conselho de Ministros e ao qual o PS propôs pequenas alterações aumenta o leque das pessoas que podem ser acusadas de discriminação porque já não abrange apenas as actividades de propaganda organizada, mas sim todas as actividades de propaganda em geral.”

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E o jornal fornecia ainda exemplos mais concretos de como esta proposta de lei se poderá aplicar, dizendo que “não poderão ser transmitidas imagens e sons, assim como citações num artigo sobre declarações num comício de um partido discriminando outro”.

Resumindo: critérios adicionais, e extremamente duvidosos, que permitem punir criminalmente alguém; visando potencialmente mais pessoas. Um golpe grotesco contra o direito à liberdade de expressão, com a conivência habitual da nossa imprensa mainstream. Note-se: a notícia do Público até soava muitíssimo bem; qualquer um concordaria. Alguém estará a favor de uma “discriminação por convicções políticas”?

O problema é saber o que é, agora, discriminação. Agora, há uma enorme facilidade para classificar qualquer coisa como discurso de ódio, e feito isto, não se sabe bem por quem, logo se condiciona a liberdade de expressão e a censura de opiniões alheias. E isto deve fazer-nos olhar para a questão com muita cautela. Por estarem em causa linhas tão ténues, a censura e o condicionamento da liberdade de expressão são matérias sobre as quais é difícil atribuir a alguém em concreto o papel de polícia do discurso. E entregar esse papel a um Governo ou mesmo a um tribunal com um Código Penal feito por um Governo é assunto delicado numa democracia. Por via das dúvidas, será sempre mais prudente garantir que cada um possa dizer o que se lhe aprouver, correndo o risco de se ofender alguns (e até ser processado se ultrapassar limites a analisar em concreto), do que lesar um direito tão elementar como o da liberdade de expressão.

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Vivemos tempos assaz perigosos, porque se mascaram intenções vis e perversas através de uma alegada preocupação com o “bem comum”. A censura continua a escalar a uma velocidade alarmante, sempre justificada pelo combate à intolerância e ao discurso de ódio – uma manobra que não passa de uma tentativa de cercear direitos e liberdades.

O mais lamentável é ver autoproclamados democratas, da esquerda à direita, aplaudirem ou assentirem com esta medida, porque “o discurso de ódio é mau e urge combatê-lo”. Os mais cínicos, destilam, eles próprios, ódio nas suas redes. Os sonsos, fecham os olhos, quando não se divertem, com insultos e ataques lançados àqueles com quem antipatizam. É o ódio do bem, a par com a hipocrisia desmesurada.

Por isso, nunca poderemos contar com a oposição de uma maioria que diz prezar a liberdade de expressão; um grupo no qual se incluem proeminentes jornalistas, políticos, comentadores, e que se estende aos demais cidadãos. Porquanto, eles mesmos apelam ao silenciamento de outras vozes, enquanto se banham na sua sinalização de virtude. Regozijam-se com a ideia de ver amordaçados os “odiosos” cujo único delito, amiúde, é destoar das convenções politicamente correctas. Projectam no outro uma pulsão ditatorial que, na verdade, está dentro de si. Entusiasmam-se com a prospectiva de ver enclausurados os seus concidadãos por um simples tweet, não compreendendo os distópicos contornos de tal punição.

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Para eles, a liberdade de expressão deveria estar, na verdade, sujeita a vários condicionalismos. Liberdade de expressão, sim, mas com muitas cláusulas.

Por isso, mesmo que agora o PS tenha deixado cair uma parte das suas propostas para instituir normas orwellianas, é necessário continuar alerta e relembrar: uma liberdade que quer condicionar previamente disparate, e até a injúria ou a mentira, não é liberdade alguma. É censura.

Maria Afonso Peixoto é jornalista


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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