história natural

A luz que vos baptize

a group of ants on a table

por Clara Pinto Correia // Fevereiro 3, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
Represados clarões, cromáticas vesânias
No limbo onde esperais a luz que vos baptize

As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

Camilo Pessanha

POEMA FINAL

in CLEPSYDRA (1920)


A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU


Graças a Deus, no meio do ruído de fundo de toda esta confusão e do cruzamento descoordenado de todos estes polegares, de vez em quando ainda conseguimos encontrar alguém que, mesmo que inicialmente não consiga recordar bem porquê, sinta um sobressalto quando ouve mencionar o ano 79 d.C.

Não é caso para menos.

O ano 79 da nossa era é um ano carregado a negro na  memória colectiva da civilização ocidental. Foi quando, nos dias tranquilos do início do Outono, a erupção do Monte Vesúvio congelou para sempre debaixo da cinza, em menos de um minuto, todo o esplendor e o requinte das cidades romanas de Pompeia e Herculano, onde viviam cerca de vinte mil pessoas.

brown concrete statue under blue sky during daytime

Foi um dos cataclismos vulcânicos mais violentos de que temos conhecimento na Europa. A nuvem de gazes superaquecidos que saiu da chaminé do Vesúvio elevou-se no ar até uma altitude de 33 quilómetros, projectando a toda a volta rocha derretida, pedra-pomes, e cinza a ferver, a um débito de 1.5 toneladas por segundo – o que deverá ter correspondido a cem vezes mais do que a energia térmica dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.

Enquanto toda esta catástrofe monumental acontecia, ia um barco a passar ao largo com um viajante muito especial a bordo.

O homem que havia de condicionar o nosso pensamento em relação ao mundo real e mágico que nos rodeia chamava-se Plínio, e era o autor do famoso HISTÓRIA NATURAL. O seu livro, a todos os títulos inesquecível, era um enorme manual de Biologia composto antes da Biologia ter nome, o compêndio de descrição do mundo vivo pelo qual toda a gente jurava. Os parágrafos começados por “Muitos autores garantem, segundo Plínio…” abundaram na literatura europeia até ao fim do século XVII, encaixando-se com bastante facilidade nos novos paradigmas da Revolução Científica. Incansável, extuante de energia, Plínio estava ali em mais uma viagem de exploração. Viu o Vesúvio explodir na costa, e ordenou imediatamente ao comandante que se aproximasse. Queria ir estudar os fenómenos vulcânicos mais de perto. Imaginem, a explosão do Vesúvio na mente do século I DC.

Plínio morreu nesse dia, envenenado pelos gases tóxicos do vulcão.

brown village arch during daytime

É verdade que o seu HISTÓRIA NATURAL nos oferecia uma Biologia cheia de uns milagres e uns prodígios que já não cabem nesta que conhecemos hoje[1]. A título de exemplo, já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito; e a prova disso é que já nenhum marido amarra com toda a força um cordel à volta do testículo esquerdo antes de copular com a esposa, para ter a certeza de que a insemina com a seiva do testículo direito, e que, portanto, vai ter um rapaz[2]. Já ninguém acredita que o sangue menstrual consegue, “só com a sua presença,” operar sortilégios tais como embaciar os espelhos, enlouquecer os cães, fazer murchar as plantas verdes, azedar as sopas, enferrujar o cobre, tirar a força ao ferro, e assim por diante. Mas muitos autores medievais e renascentistas limitaram-se a evocar Plínio para darem mais credibilidade às suas teses – o que, por sua vez, mostra bem o respeito enorme que a sombra do autor da primeira HISTÓRIA NATURAL projectava sobre a mente europeia. E ressalve-se, também a título de exemplo, que Plínio foi dos primeiros a descrever, e com bastante minúcia, a técnica dos egípcios para incubar os ovos de pinto durante três semanas debaixo de estrume de cavalo – e esta técnica, que parece também ela tirada de uma qualquer fábula exótica, foi usada, pelo menos, até ao século XX[3].

E, evidentemente, não há nada capaz de impedir o mundo vivo de estar literalmente pejado de maravilhas que não podiam ser mais reais, mais verdadeiras, mais cientificamente demonstradas – e, por isso mesmo, mais incrivelmente maravilhosas.

Nesta minha apresentação do prazer que me é tão próprio que acabou por tornar-se parte integrante de mim, o prazer de falar aos outros das coisas da Natureza, deixem-me começar por protestar que não sou, de maneira nenhuma, o único autor ocidental sensível ao charme e ao conforto dos lugares-comuns. Com a sua tranquilização instantânea e gratificante de vestuário já usado ou calçado muitas vezes[4], os lugares-comuns podem ser úteis no fio condutor de certas histórias. E é exactamente por isso que aqui estão, a pôr em perspectiva tudo o que vem a seguir.

As coisas passaram-se assim, por ordem de entrada em cena.

Ao desenvolver o lobo frontal do cérebro, uma arma mortífera ausente em todos os outros seres vivos, o homem vê-se obrigado a pensar. O pensamento é a invenção mais perversa de toda a Evolução. Só porque os seus neurónios se multiplicam e se ligam de uma forma especial e desconhecida, o pobre primata gabro, sem presas nem garras, começa a precisar de triunfar sobre a sua angústia perante todo o vazio cognitivo que o  rodeia e o intimida. Século após século, mamute após mamute, mistério após mistério, esse vazio vai-se limpando como quando um nevoeiro denso se vai tornando cada vez mais fino. São destes primeiros esforços que nascem as histórias capazes de explicar o que são as fogueiras que aparecem no céu durante a noite, de onde vem aquele disco tão brilhante, que, de repente, vai subindo pelo ar e modificando todas as cores e odores no seu trânsito diário de um lado ao outro do horizonte, que dança estranha é aquela que esse disco maior faz com o outro que vem em sentido oposto e ao mudar de forma também muda as marés, e mais, e muito mais.

É assim que o primeiro esboço de pensamento vai deslizando para fora de todas as ignorâncias urgentes, e, em consequência, é assim que começa a delinear-se  um mínimo de mapa primitivo que nos permite pôr tudo o que dantes não tinha nome em perspectiva, estruturando pela primeira vez, num deslumbramento feliz, todo o que conhecimento que herdámos dos primeiros sábios. E é assim que, no decurso desse primeiro preenchimento progressivo do vazio, acaba por nascer aquilo a que hoje chamamos mitologia.

Essa mitologia, no entanto, é-nos legada em sagas e épicos que são por natureza construídos em estrutura de hipérbole interminável, além de padecerem de um excesso metafórico com uma leitura que fica de todo em todo fora do alcance do comum dos mortais. Por isso mesmo, a linguagem seguinte que a nossa espécie constrói para ler o mundo destina-se a libertar-nos dos oráculos. Trata-se, agora, de tornar as primeiras sagas e os primeiros épicos acessíveis a todos os humanos, desde que sejam crentes ou se vão deixando iniciar iniciar enquanto tal. E é por isso mesmo que, com a passagem do tempo, essa mitologia inicial  começa a oferecer-nos uma semelhança do mundo  que se conta em muito menos palavras, e que já conseguimos dominar muito melhor.

human anatomy model

Este novo domínio é estruturado lentamente em torno das alegorias construídas para explicar tudo o que nos barra a passagem com a sua faceta inexplicável. Quanto mais entendemos o que nos rodeia, mais se vai transitando, em todo o mundo, e numa panóplia riquíssima de dares e tomares, para aquilo a que agora chamamos religião.

E, agora sim, de posse desta nova forma de crença, já não há fenómeno natural que não possa ser entendido pelos iluminados[5] e explicado sem  esforço à turbamulta das multidões.

No final do percurso, há, ainda, uma terceira transição que se baseia em todo o nosso saber mais complexo que se foi acumulando ao longo do caminho. O vazio que encheu os primeiros homens de curiosidade e de temor vai-se preenchendo de uma forma cada vez mais clara, mais útil, mais eficaz para a sobrevivência humana – e tudo isto se regista numa sequência cada vez mais rápida e mais rica em dilemas impossíveis de sonhar sequer poucos séculos antes.

Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, pela primeira vez na nossa semelhança do mundo, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal. Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira física universal como a face visível de Deus.

grayscale photo of person holding silver necklace

Nature and Nature’s laws

Lay hid in the night

God said: LET NEWTON BE!

And all was light,”[6]

escreveu Alexander Pope como epitáfio para o seu amigo, que, quando falou pela primeira vez da Gravidade no seu PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA[7], geralmente referido apenas como PRINCIPIA, se referiu bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[8]. Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, incluindo o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantrópica científica Madame de Châtelet[9], que depois inspirou vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitaçãoo Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou Matemática[10]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Sei lá, mas assim de cabeça. Já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito. Já ninguém acredita que o sangue menstrual

[2] Bem, era só um “conselho aos casais.” Mas os médicos repetiram-no até ao dealbar do século XVIII.

[3] Tomem lá fresquinho. É uma pena não sabermos se os egípcios das paragens mais remotas ainda incubam os ovos dos seus pintos desta maneira. Provavelmente sim. Houve muita coisa bonita que deixámos de saber devido à estupidez da nossa arrogância “moderna”. Infelizmente, muitas vezes esta arrogância é considerada “científica”. Bem, pelos meus pecados, e pela parte que me cabe, eu juro que não.

[4] Estou a parafrasear qualquer coisa já escrita antes pelo Agualusa, embora o original dele fosse bastante mais poético do que o meu.

[5] Mas note-se, estes iluminados já não são oráculos. Na modéstia enorme que lhes cabe, como a modéstia que cabe ao Papa, são apenas oficiantes. Pedimos-lhes apenas, que sejam bons, leais, justos e rectos. Não lhes pedimos que vejam coisas nem que oiçam vozes. Essas pessoas são hoje consideradas esquizofrénicas, e os bons esquizofrénicos já nem sequer existem. A medicação funciona.

[6] “A Natureza e as suas leis

Estavam escondidos na noite

Deus disse: “Que exista Newton!”

E fez-se a luz.”

[7] OS PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL. Editado originalmente em 1687

[8] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

[9] E tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de de campo que a senhora mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome deveras apropriado de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca”, mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante. No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, do NEWTON PARA SENHORAS a várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE, convém não nos esquecermos que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, que Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

[10] Os chamados “Comentadores de Newton”.


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