RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses

por Rui Araújo // Maio 3, 2024


Categoria: Exame

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O Governo português autorizou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – ou Sociedade Genealógica do Utah – a microfilmar os assentos paroquiais dos portugueses. Mas esta autorização foi legal? Quais são as suas implicações para os portugueses?

Uma reportagem do jornalista Rui Araújo publicada na Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


O carteiro, habituado às deambulações oficiais, entra no n.º 23 da Avenida António Serpa, em Lisboa, e deposita na caixa da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias uma carta dirigida à Sociedade Genealógica do Utah.

«A Sociedade Genealógica do Utah está autorizada a microfilmar os assentos paroquiais dos arquivos distritais, referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900».

Este poderia bem ser o texto do ofício enviado em 19 de Julho de 1979 pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira, à seita religiosa norte-americana, em resposta a um pedido nesse sentido.

Mas, afinal, em que ficamos? Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias ou Sociedade Genealógica do Utah? Seita religiosa ou instituto de estudos genealógicos?

Entrada do ‘Granite Mountain Records Vault’, localizado nas montanhas que rodeiam Salt Lake Valley (Estados Unidos) (2010). (Foto: D.R.)

De facto, o pedido dirigido à Secretaria de Estado da Cultura fora feito pela Sociedade Genealógica do Utah. Mas a Sociedade é apenas um instituto criado pela Igreja, a forma institucional assumida pelos mórmons.

Hoje, passados três anos, os mórmons já microfilmaram os registos dos distritos de Aveiro, Évora, Faro, Leiria, Portalegre, Setúbal e Viseu. Estão a negociar os últimos detalhes relativos a Lisboa.

E, dentro de alguns meses, todos os portugueses com mais de 82 anos, bem como os seus antepassados, (pelo menos estes) terão a sua ficha na fita magnética de um computador instalado em Granite Mountain, Salt Lake City, Estados Unidos.

E porquê? A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias — ou a Sociedade Genealógica do Utah — dizem utilizar os microfilmes para «funções de tipo cultural», embora não tenha havido qualquer referência prévia ao facto de que os dados obtidos constituem parte importante de um ficheiro computorizado.

«Funções de tipo cultural»: para que, como nos disse o responsável americano da Igreja em Portugal, Harold G. Hillam, cada pessoa possa reconstituir a história da sua vida. «Os Profetas antigos da Bíblia guardavam suas histórias e nós devemos considerar os registos do Passado como Sagrados», adiantou Hillam, num português ainda tímido.

Vantagens dos cidadãos portugueses? As que resultam do facto de, dentro de alguns anos, os portugueses terem «a possibilidade de obter a sua genealogia, porque vivem num país onde a liberdade religiosa é uma realidade.» — acrescenta Hillam.

Harold G. Hillam. (Foto: Imagem capturada de um vídeo de um sermão proferido em Abril de 2005)

Porém, as operações de microfilmagem custam muitos milhões de dólares. O dinheiro vem das caixas americana e alemã da Igreja Mórmon. São, aliás, técnicos da RFA que estão a dirigir os trabalhos em território português. Os filmes impressionados são imediatamente enviados para a sede da seita, em Salt Lake Ciry, onde serão revelados. O original vai para o cofre da montanha e a cópia (excepto em alguns casos) para o arquivo de origem.

«Na minha opinião, é a história do pobre e do rico», disse à ABC a Conservadora dos Arquivos do Distrito de Viseu, Dra. Maria Fernanda Mota, uma das raras pessoas que em Portugal têm conhecimento do assunto.

Mas se esta história «é positiva, em alguma medida, para os arquivos nacionais — dado o estado de penúria em que se vive — não é menos verdade que há elementos subjectivos para além dos que estão no contrato, e o interesse do Arquivo não seria certamente idêntico ao da Sociedade Genealógica do Utah».

Elementos subjectivos? E quais? A Conservadora não o disse, mas é possível analisar alguns, mais adiante. Em todo o caso, a «ofensiva» mórmon já atingiu praticamente o conjunto da Europa Ocidental e, seguramente, a Polónia. O que coloca algumas perguntas: afinal, quem são os mórmons? Ou, por outras palavras: Quais os seus objectivos?

Uma funcionária a converter microfilme para formato digital no ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto: D.R.)

Era uma vez uma vez um adolescente visionário…

A história dos mórmons é, ao mesmo tempo, uma Epopeia lírica e uma aventura de «cowboys». O desafio lançado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias começa numa manhã primaveril de 1820, quando um jovem camponês, Joseph Smith, tem uma rara visão: Joseph isolara-se uma vez mais num bosque perto de Palmyra para, «sob o olhar vigilante de Deus», meditar sobre as disputas entre as várias formações religiosas e a sua adesão a esta ou aquela doutrina.

Dois anjos apareceram diante dos seus olhos. Foi-lhe «dito» que não se unisse a nenhuma igreja, porque todas estavam «erradas». Os credos eram «abomináveis» e os mestres «corruptos». Anunciaram-lhe que seria chamado para «reconstituir a Igreja Cristã Primitiva na sua integralidade», uma vez que esta tinha perdido a Verdade.

Um dos anjos volta a surgir exactamente três anos depois. Desta vez revela-lhe algo deveras surpreendente. «Disse que havia um livro despotiado, escrito sobre placas de ouro, acerca dos antigos habitantes deste continente, assim como sobre a origem da sua precedência», escreveria ulteriormente Smith.

Depois de uma terceira visão, em 1827, Smith recebeu as duas pedras mágicas que lhe davam o conhecimento necessário para poder traduzir o Livro de Ouro.

«A tradução foi concluída em 1829. O anjo veio então recuperar as pedras mágicas e as placas de ouro. E é por essa razão que nunca ninguém as conseguiu ver, excepto um fazendeiro e dois colegas amigos de Smith, futuros membros da ainda inexistente Igreja Mórmon.

A partir daqui, a história das primeiras décadas da Igreja Mórmon é a história de uma quase interminável migração.

Como a Igreja Mórmon precisava de uma base geográfico-política para ser reconhecida, o Profeta decretou a edificação de «um Estado teocrático dirigido pelos dignatários da Igreja assistidos pelo clero, formando um governo descendente de Deus» e com um poder real.

Profetas e fiéis partiram do Estado de Nova Iorque com destino ao Ohio. Chegam a Kirtland em 1831. Mas a simpática povoação será, no fim de contas, apenas uma etapa. Apesar da criação de uma Estaca. O destino reservara-lhes outros êxodos.

Foram para o Missouri. Mas lá, o nortista era um homem suspeito. E suspeito era o mórmon. Que aparecia com teorias revolucionárias. Com idealismos. Em suma, era um anti-esclavagista…

No Inverno de 1833/34 é dada a ordem de partida. Conseguem chegar a Independance, mais tarde denominada Nova Jerusalém. Mas voltam a ser expulsos. Vão para Oeste e criam a cidade de Far West. E, desta vez, são as revoltas internas que põemem causa a paz da comunidade. Agitação. Desordem. E nova partida para longe.

Em nome do ideal fundam Nauvoo. E eis que Terra Prometida lhes dá por fim acesso ao Estado teocrático sonhado. Com o poder executivo, legislativo e judiciário. Com uma universidade e um templo. Comum exército comandado pelo guia supremo da Igreja, Joseph Smith, que, por  falta de inimigos, vai dedicar o seu tempo à organização espiritual. Aquela que ainda hoje está em vigor.

À cabeça da Igreja está o «Presidente, Profeta, Vidente e Revelador». Ele é assistido por dois conselheiros. As visões são aceites pelo «Conselho dos Doze Apóstolos», responsável da obra missionária mundial. Em seguida, há os sete presidentes do «Conselho dos Setenta», criado em Fevereiro de 1835.

O credo mórmon decretado por Smith não foi modificado. Tal como Moisés, o Profeta Smith constituiu a sua «Tábua da Lei».

(Foto: D.R.)

E Deus criou a poligamia

Joseph Smith era, sem dúvida alguma, um visionário. Com algumas particularidades: por exemplo, de Deus «recebeu» a obrigação de introduzir, na casta Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nada mais nada menos que a poligamia. E ainda hoje há quem diga que aquela revelação era dos diabos…

Emma Hele é talvez a «culpada» da visão do Profeta. Emma, uma mulher bonita e inteligente, era a esposa de Smith. O marido apontava-lhe um único defeito: a sua falta de apetite. Sexual, está claro. Emma não conseguir jugular a grande sensualidade do marido.

O mórmon que se respeita diz que a poligamia (denominada oficialmente «casamento plural») foi criada para garantir a existência da colónia e contentar as mulheres, que são em número superior ao dos homens.

As más línguas sustentam que, como Smith não tinha bastante ousadia para ultrapassar, tanto as tentações como o terror do adultério, decidiu um dia fazer um apelo a Deus para o livrar de todos os escrúpulos possíveis.

E quem espera, sempre alcança… No dia 12 de Julho de 1843 teve uma visão sobre a «Eternidade do Convénio Matrimonial e do Casamento Plural».

A argumentação da Igreja relativamente a esta questão é um excelente pedaço de antologia místico-macho-sexual. Senão, vejamos: «Durante anos, depois de ter conhecimento de tal doutrina através da revelação Divina, Joseph sentiu-se impossibilitado de pô-la em prática ou ensiná-la a outros. (…) Muitas mulheres teriam de viver e morrer solteiras, privadas da oportunidade de desenvolvimento proporcionado pelo casamento. (…) Os melhores membros da Igreja e as melhores pessoas do Mundo surgiram através do casamento plural».

Smith aconselhou, portanto, os seus discípulos a seguirem as leis do Senhor. E eles obedeceram. Por Brigham Young, o sucessor de Smith, homem de acção e de muitas mulheres que, curiosamente, contribuíram de forma significativa para a sua fortuna.

Estátua de Joseph Smith e Hyrum (Illinois, Estados Unidos). (Foto: D.R.)

Joseph Smith e o seu irmão Hyrum faleceram em 1844 na cidade de Nauvoo no decorrer de uma manifestação antipoligamista. Os mórmons partiram para perto do Lago Salgado, no ano de 1847. Durante 22 anos, vão criar as bases de um estado independente: o «Deseret» (abelha), que será integrado na União em 1850, depois da construção da via férrea do Pacífico, sob o nome de Território do Utah.

A poligamia viria a ser retirada das obrigações religiosas por imposição da lei federal e por decisão do Profeta Young em 1890. Mas 65 anos depois, alguns dissidentes excomungados restabeleciam a poligamia no México e nos EUA. Com algum sucesso, aliás.

Seis homens telecomandados pelo Papa dissidente Ervil Le Baron, chefe de um grupo polígamo, mataram no dia 10 de Maio de 1977 o seu rival do Utah, Alfred Vernon, fazendo sete viúvas e trinta crianças orfãs. Na cidade de Colorado, no Estado do Arizona, a Polícia teria descoberto recentemente mais de 5 mil homens polígamos.

Mas se é verdade que a poligamia desapareceu quase por completo da comunidade ortodoxa mórmon, que se desenvolveu rapidamente e tem hoje cerca de 6 milhões de membros espalhados pelos cinco continentes (com uma taxa de crescimento de 150 % desde 1963), não é menos certo que ser mórmon em 1982 é ser ainda, em larga medida, machista.

A esposa virtuosa deve ter, pelo menos, 5 filhos. Deve ficar em casa e efectuar todas as tarefas caseiras. A feminista Sonia Johnson foi excomungada em Dezembro de 1979, ao pôr em causa determinadas regras impostas às suas congéneres, como a necessidade de serem boas mães. Boas vizinhas. Boas donas-de-casa. E virgens antes do casamento.

Uma fonte de poder

Honestos, metódicos e rigorosos por natureza os mórmons têm boas situações e representam uma força política importante, sobretudo nos Estados Unidos. Eisenhower teve um ministro mórmon. Kennedy, idem. Nixon, três.

«Ainda não há de momento nenhum ministro mórmon em Portugal…», confidenciou-nos o Presidente Hillam. Sorrindo. E tem de quê. A adesão dos portugueses à Igreja mórmon está em progressão. Em Novembro de 1975, data da sua instalação no nosso país eram uns seis. Hoje, são mais de 6 mil. E dois milhares de pessoas aderem cada ano à Igreja. São, na sua maioria, médicos, advogados, e algumas pessoas de origem mais modesta.

O Irmão Xavier, 22 anos, natural do Porto, solta um «Puxa Vida» e retira a folha da máquina de escrever. É mórmon há três anos. Antes, era empregado de escritório e estudava à noite. Andava a tirar um curso de «Artes do Fogo« na Escola Soares dos Reis. Deixou a terra, a família, o emprego e a religião católica, «por amor à mesma religião, mas por melhores princípios».

«Contactaram-me na rua. Depois, assisti a sete palestras e aderi à Igreja. Embora os meus pais não compreendessem a minha atitude, devo dizer que o mesmo não aconteceu com os meus dois irmãos que também já cá estão», contou-nos o Irmão Xavier, antes de inserir outra folha na máquina. «E se os meus vizinhos não são mórmons é porque é difícil deixar de fumar e de beber…», concluiu.

Se o mormonismo sobreviveu depois de tantas peripécias e acabou por se desenvolver de forma tão notória em muitos países, não foi devido unicamente à sua arte de comunicar a palavra de Deus. Há também o «sucesso da colonização do Utah (onde 75 % da população é mórmon), o trabalho, a riqueza e uma vida familiar digna», como afirma uma especialista francesa.

O Templo de Kirtland (Ohio, Estados Unidos) foi o primeiro templo construído pelos mórmon (Foto: D.R.)

A taxa de divórcios no Estado do Utah é a mais baixa dos EUA; a delinquência juvenil a mais reduzida. A taxa de frequência escolar e universitária é das mais elevadas do país. A Universidade Brigham Young, em Provo, no Utah, com 15 mil estudantes, é a maior universidade norte-americana pertencente a uma igreja.

Mas a Igreja Mórmon representa também um poder financeiro indiscutível. É muito rica. Os seus rendimentos anuais ultrapassam os mil milhões de dólares, só com os 10 % dos ordenados anuais dos membros. A Igreja possui ainda 160.000 hectares de terrenos, uma grande parte dos prédios de Salt Lake City, 383 milhões de dólares nas companhias de seguros, um jornal, várias revistas, 11 estações de rádio, 2 canais de TV, uma sociedade de produção de açúcar, acções num grupo de grandes armazéns, etc, etc.

Em Portugal, o orçamento dos mórmons deve atingir centenas de milhares de contos. E como a Igreja não paga impostos e pouco gasta com o seu pessoal e instalações, como e onde é investido o dinheiro? Com que finalidade? Perguntas às quais não obtivemos qualquer resposta. Constantemente nos vimos confrontados com uma forma de segredo, que não é mais, afinal, do que a defesa «instintiva de toas as instituições contra o olhar do próximo». A seita parece ignorar o direito à Informação… concreta. Porque, quanto aos dados histórico-metafísicos, aí sim, ela é pródiga em detalhes.

Bem-estar, sobrevivência e salvação

18:10. Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

Um dos 33 centros da Igreja em terra portuguesa. Três garotos brincam no átrio do palacete do número 93. Um cântico invade a obscuridade.

Alguns dos 2.000 mórmons residentes em Lisboa assistem neste 13 de Novembro, um domingo, a mais uma reunião da seita. Depois do Hino e da Oração há o programa do Bem-Estar. Criado há alguns anos atrás para garantir a sobrevivência dos adeptos, «sobretudo em relação ao Governo». Na realidade, em relação à guerra.

«O programa é tão bom que o governo americano estaria neste momento em negociações com a Igreja Mórmon com vista à adopção do Plano de Bem-Estar», diz-nos o Irmão Amorim, um jovem brasileiro mórmon.

«Plano de Bem-Estar significa independência. Felicidade. Em primeiro lugar, a família é responsável pelo seu auto-sustento. Em segundo, é a Igreja».

Mas o Plano de Bem-Estar, nesse domingo, é também a evocação dos Estados Emocionais, a Tranquilidade, o Armazenamento (de víveres), a Sobrevivência em qualquer situação, os homens do deserto, e… uns cantares e danças.

Movimento messiânico (puro), o mormonismo anuncia para amanhã («ou depois de amanhã») o regresso de Cristo e prepara os seus membros para afrontar o Juízo Final. Em dados concretos, os mórmons como, sobretudo, muitos norte-americanos, vivem condicionados pelo medo, pelos novos medos. Como a ameaça atómica, por exemplo. Ou como a guerra, toda e qualquer espécie de guerra.

Perante as ameaças de um mundo exterior, hostil e militarizado, como é possível alcançar a Salvação?

«Quem crer e for baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado». São Marcos. 16:16. O Presidente Hillam fecha o livro sagrado e desenvolve a ideia: «As pessoas têm de ser baptizadas pela Autoridade, mesmo os mortos, porque o que é essencial é a família».

Hillam, meio businessman, meio padre (elegante) de província, insiste. Faz perguntas. «Se Deus é justo, o que vai acontecer às pessoas que não foram baptizadas ?» Silêncio. O monólogo continua. «Deus disse que sem baptismo não há Salvação. Por isso, nós devemos ter as informações sobre as pessoas».

Perante o nosso pedido para gravar as suas declarações, Hillam desculpa-se com a má qualidade do seu português. E ataca de novo. Jesus volta à baila. «No tempo de Jesus, foi ensinado que nós temos uma responsabilidade para com os nossos antepassados. Cremos profundamente que eles são importantes e que não devem ser esquecidos».

Esquecidos pela Igreja Mórmon? Hillam limita-se a dizer que não serão obrigatoriamente baptizados pelos mórmons. Então por quem? A reposta evasiva não faz sentido. «Por outras igrejas…»

Surge então a questão das pessoas que não têm o seu nome nos arquivos existentes. Hillam replica como dever para todos os que «estão» nos arquivos. E sublinha uma frase do «Nosso Pai Celeste»: «Faz o que podes fazer». E os católicos? E os muçulmanos? E os ateus? Estarão interessados em ser baptizados, mesmo postumamente, pelos mórmons?

Em plano século XX, os meios tecnológicos disponíveis facilitam o trabalho dos mórmons. Já ninguém se lembra de copiar pacientemente, linha após linha, os milhares de livros de registo civil existentes nos arquivos portugueses, desde que a obrigatoriedade do registo foi decretada em 1532.

Por isso, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou, directamente a Sociedade Genealógica do Utah, recorrem ao microfilme e, inevitavelmente, à computarização dos dados. Os objectivos parecem ser transparentes: são de natureza religiosa. Mas, nesse caso, porquê utilizar o nome de uma sociedade subsidiária da Igreja que constitui a sua razão de ser? Ou, inversamente, se a Sociedade Genealógica do Utah é um instituto cultural, como articular a sua actividade com os objectivos confessionais proclamados pelos mórmons?

David Mourão Ferreira (1985). (Foto: D.R./António Duarte/Museu do Fado)

A operação de microfilmagem dos arquivos e registos portugueses foi autorizada em 1979, pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira. Mourão Ferreira fazia parte do Governo de Mota Pinto, mas quando o seu despacho relativo à pretensão da Sociedade Genealógica do Utah foi lavrado, em Julho de 1979, o escritor limitava-se a assegurar a gestão dos negócios correntes, já que o IV Governo perdera a confiança da Assembleia da República.

Três anos depois, contactado por ABC, David Mourão Ferreira diz não se recordar desse despacho, nem das circunstâncias em que foi lavrado. Provavelmente, o secretário de Estado terá aposto a sua assinatura sobre uma informação de serviço que lhe foi preparada por um funcionário da Direcção-Geral do Património, hoje Instituto Português do Património Cultural.

Aparentemente, a dúvida que se levanta é saber porque razão foi o Património chamado a informar sobre a pretensão dos mórmons. Mas é certo que o requerimento se referia apenas à microfilmagem dos registos «referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900». Tratar-se-ia, portanto, de uma investigação de natureza histórica, que só em muito pequena parte atingiria cidadãos portugueses ainda vivos.

Gráfico de linhagem: só para fins culturais?
(Foto: Documento em português dos mórmons)

Algumas interrogações

Acontece, porém, que nos registos paroquiais se assentam acontecimentos importante da vida do cidadão, para lá do nascimento. Concretamente: no registo é averbado o casamento, o que significa, desde logo, que os mórmons têm neste momento facilidades duplas duplas na identificação de todos os portugueses com mais de 80 anos — pelo menos. E, como de todos os actos públicos sujeitos a registo podem ser extraídas certidões, a pedido de qualquer interessado, logo se vê como qualquer investigação sobre cidadãos portugueses vivos pode ser feita a partir dos dados básicos recolhidos pela Sociedade Genealógica do Utah.

Vejamos mais de perto o processo. Desde que são microfilmados os registos qual é o percurso seguido pelos microfilmes? Tomemos o exemplo do Arquivo Distrital de Viseu. As relações entre a Sociedade Genealógica do Utah e o Arquivo de Viseu estão regulamentadas num contrato-tipo «para a autorização da microfilmagem de documentos com interesse genealógico». O contrato é um extenso documento de 13 artigos, nos quais se estipulam minuciosamente condições, destino e contrapartidas à operação contratada.

Um corredor no interior do ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto. D.R.)

Aí se lê, no artigo 3.º, que a Sociedade Genealógica do Utah se obriga «a revelar por conta própria os microfilmes, nas suas instalações de Salt Lake City, Utah, ou em outro local sob a sua direcção, e compromete-se a guardar, preservar e conservar os negativos nos seus depósitos de Granite Mountain». Por outro lado, o artigo seguinte refere que a Sociedade fornecerá um duplicado da matriz de microfilme ao Arquivo Distrital que é parte contratante.

Qualquer nova cópia só poderá ser fornecida pela Sociedade a outras pessoas ou instituições, mediante autorização da Direcção do Arquivo Distrital. Mas numa notícia datada de 27/08/80, redigida em inglês e distribuída aos órgãos de informação nos Estados Unidos, diz-se que na Biblioteca Genealógica de Salta Lake City existem microfilmes de arquivos de 37 países, «equivalentes a 4.927.000 volumes impressos de 300 páginas cada um, estando 157.000 volumes genealógicos disponíveis para investigação privada, quer de membros quer de não membros da Igreja». A investigação é feita com recurso a um centro informático onde se recolhem, devidamente tratadas, todas as informações recolhidas em microfilme. Em que medida é que uma interpretação extensiva destes dados não permitirá pôr em causa a reserva estabelecida no artigo 6.º do contrato tipo?

No Arquivo de Viseu, as operações de microfilmagem estão hoje praticamente concluídas. Os últimos 12 livros foram fotografados ainda muito recentemente, mas o Arquivo já recebeu parte dos duplicados previstos no artigo 5.º do contrato. Que vai o Arquivo fazer com esse material? A Conservadora do Arquivo, Drª. Maria Fernanda Mota, diz que de momento, «não existe nenhum leitor de microfilmes» em Viseu. Os rolos de película estão armazenados nas instalações do Arquivo, em condições que estão longe de ser as melhores para a preservação de material desse tipo. «A casa já tem alguns séculos», confessou a Conservadora.

E a Constituição Portuguesa não proíbe?

As operações de microfilmagem foram efectuadas em Viseu por uma equipa de três pessoas, entre as quais um cidadão brasileiro. Dos microfilmes arquivados em Salt Lake City serão ulteriormente feitas cópias de trabalho para utilização da Sociedade — ou da Igreja — em Portugal.

As fichas reproduzidas nestas páginas são fornecidas a quem as solicitar. Se, por exemplo, uma pessoa deseja conhecer informações «genealógicas« sobre outra, basta-lhe pedir. A resposta, dada pelos computadores, é lavrada nas fichas, editadas pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Como se vê, para lá das informações relativas à identificação do cidadão, constam espaços para dados sobre cônjuges, ascendentes e descendentes. Ora, se o acesso a esses dados é livre, a partir das instalações de Salt Lake City, e se deles é extraída cópia para utilização em Portugal, não é difícil nem exagerado afirmar que há pessoas que sabem ou que podem vir a saber tudo sobre a árvore genealógica, a ascendência, descendência e a vida civil de qualquer leitor de ABC.

(Foto: Documento da seita)

A preocupação com o destino dos dados recolhidos não é gratuita. Em França, por exemplo, ainda recentemente se levantou a questão de saber se as operações de microfilmagem deveriam continuar a ser autorizadas. Embora a decisão das autoridades francesas não tenha sido tomada, sabe-se que Henri Caillavat, presidente da Comissão Informática e Liberdade, está disposto a recomendar às autoridades que os arquivos franceses continuem disponíveis para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, pelo menos, durante mais cinco anos.

Caillavat manifestou-se «satisfeito» com as informações que lhe foram dadas, após uma visita realizada em 14 de Setembro às instalações e ao centro da informática dos mórmons, em Salt Lake City.

Reportagem na revista ABC. (Foto: D.R.)

Um último aspecto: se ninguém até hoje conseguiu distinguir entre o que são objectivos culturais e objectivos religiosos, talvez seja conveniente, para os mais esquecidos ou menos atentos, uma leitura do Art.º 35 da Constituição da República Portuguesa: «A Informática não pode ser usada para tratamento de dados referentes a convicções políticas, fé religiosa ou vida privada, salvo quando se trate de processamento de dados não identificáveis para fins estatísticos». Em que ficamos?

Para um constitucionalista, que solicitou não ser identificado, «o problema fundamental — uma vez que os dados não são directamente referentes à fé religiosa — é o da legitimidade do fim.»

Falta saber, portanto, se o fim é legítimo em face dos princípios: se não há violação da dignidade da pessoa (artigo 1.º da Constituição); nem dos princípios relativos à liberdade religiosa. «Baptizar as pessoas independentemente da sua vontade pode ser considerado um acto irrelevante como uma ofensa à liberdade religiosa», acrescentou o constitucionalista.

De qualquer modo, cada cidadão português poderá perguntar à Igreja Mórmon e/ou à Sociedade Genealógica do Utah qual a finalidade destas operações. Mas, desde já, resta uma declaração e vontade: Rui Araújo, cidadão português, não está interessado em ter, agora ou no futuro, os dados pessoais num computador (de uma seita) — ainda que para fins de investigação cultural. Mais: desde já se declara que o jornalista não quer ser baptizado, ainda que postumamente, pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.


Reportagem originalmente publicada n Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


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