Desde 2021, Samsic encaixou 11,2 milhões de euros livre de concorrência

Limpeza no Fisco: Governo Montenegro também já entrega contratos de ‘mão-beijada’ a empresa francesa

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por Pedro Almeida Vieira // Novembro 28, 2024


Categoria: Res Publica, Exame

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Mudou o Governo, mas os negócios entre a empresa francesa Samsic e a Autoridade Tributária e Aduaneira continuam de pedra e cal. Este mês entrou em vigor mais um ajuste directo, o 21º desde 2017, para limpeza das instalações da ‘máquina fiscal’, sempre com o argumento da “urgência imperiosa resultantes de acontecimentos imprevisíveis”, que já dura há sete anos. Durante o Governo Costa, os contratos de ‘mão-beijadas’ eram suportados por despachos do Ministério das Finanças, mas o último justificava a escolha sem concorrência da Samsic, só até ao final do primeiro semestre deste ano. Aparentemente, a limpeza continuou mesmo sem contrato entre os meses de Julho e Outubro. E surgiu agora, caído do céu, mais um ajuste directo por mais um mês. O Ministério de Miranda Sarmento não dá explicações sobre um negócio que desde 2021 deu 11,4 milhões de euros à empresa francesa, ‘sem espinhas’, ou seja, sem concorrência.


Desde 2017, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) anda a contratar sempre a mesma empresa de limpeza, a Samsic, através de ajustes directos justificados por alegada “urgência imperiosa” e ‘escoltados’ em despachos do Ministério das Finanças. Já são 21 ajutes directos sucessivos, usando um subterfúgio legal no Código dos Contratos Públicos, mas que se torna ilegal quando usado de forma abusiva.

A prática de contratualizar serviços de limpeza só à Samsic sem qualquer concurso público surgiu durante o Governo de António Costa, mas está a prolongar-se com o Governo de Luís Montenegro, uma vez que foi assinado pelo menos mais um ajuste directo este semestre. Com capitais franceses, a Samsic soma já 25 contratos para limpar as instalações da ‘máquina fiscal’, sendo que os últimos 21 foram por ajuste directo, sem qualquer possibilidade de apresentação de propostas por outros candidatos. Os serviços de limpeza, a par da segurança e do fornecimentos de refeições, é um dos sectores onde a prática abusiva de contratos de ‘mão-beijada’ se tem vindo a generalizar, ano após anos, de uma forma arbitrária e potencialmente ilegal, nas ‘barbas’ do Tribunal de Contas.

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Apesar de ser um serviço programável – e onde os concursos públicos fazem todo o sentido, por uma questão do melhor preço e qualidade –, apenas dois contratos, desde 2016, não foram realizados por ajuste directo, tendo sido abrangidos por um acordo-quadro. E grande parte dos contratos entre a Autoridade Tributária e a Samsic foram celebrados no decurso do período de vigência, que normalmente são trimestrais, mas podem abranger outras durações sem se perceber os motivos. O mais recente, por exemplo, no valor de cerca de 350 mil euros (sem IVA), é uma excepção: foi assinado em 30 de Outubro e vigora durante o actual mês de Novembro.

Contudo, o ajuste directo anterior a este, que consta no Portal Base, no valor de um pouco mais de dois milhões de euros, foi assinado apenas em Abril deste ano, apesar da sua vigência se aplicar a todo o primeiro semestre (Janeiro a Junho de 2024). Não existe no Portal Base ainda qualquer referência à prestação de serviços de limpeza referentes aos meses de Julho, Agosto, Setembro e Outubro – ou seja, quatro meses. O valor deste período ‘esquecido’ deve ascender aos 1,4 milhões de euros.

Conforme o PÁGINA UM já havia atestado em Outubro do ano passado, quase todos os contratos têm contornos estranhos, havendo mesmo sinais de fraude. Com efeito, em diversos contratos existrem evidências de os preços terem sido inflacionados para compensar a inexistência de suporte contratual em períodos anteriores. Um desses contratos teve uma duração de apenas 13 dias, porque só foi assinado no dia 19 de Março de 2019 e expirava no dia 31 desse mês, e envolveu um pagamento de 648.402 euros, significando assim que, formalmente, em cada um dos poucos dias deste contrato de limpeza a Autoridade Tributária pagou 49.877 euros à Samsic. No mês seguinte, em Abril, entraria em vigor um novo contrato por ajuste directo, que durou 275 dias, até ao final do ano. Como teve um preço contratual de 1.984.242,74 euros, significa que por dia custou 7.215 euros, bem demonstrativo de que o contrato de Março de 2019 foi forjado para ter um preço médio mais de sete vezes superior.

Helena Borges, directora-geral da AT, e Cláudia Reis Duarte, secretária de Estado dos Assuntos Fiscais. O Ministério das Finanças do actual Governo não diz se manterá prática que ajustes directos sempre com a Samsic.

Todos os ajustes directos desde 2016 têm sido assinados pelo subdirector Roda Inácio, nomeado pela então ministra social-democrata Maria Luís Albuquerque, actual comissária europeia. Em alguns contratos inseridos no Portal Base, o seu nome está indevidamente rasurado alegadamente por causa do Regulamento Geral da Protecção de Dados.

O uso de tantos despachos governamentais para justificar a entrega de ‘mão-beijada’ de contratos sempre à mesma empresa, e alegando sempre “urgência imperiosa”, não é uma prática comum e a sua legalidade é bastante questionável. Através destes despachos, o Governo Costa autorizou, entre 2021 e 2024, a aquisição de serviços de limpeza à Samsic no valor total de 9.115.734,10 euros (11,2 milhões de euros com IVA), fundamentados num alegado critério material decorrente de supostos “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” pela AT. Mas isso somente pode servir de argumento se for “na medida do estritamente necessário” e, em simultâneo, “as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”, ou seja, neste caso, à AT.

O PÁGINA UM consultou advogados especializados em contratação pública que referiram que a urgência imperiosa exige que a situação seja comprovadamente imprevisível, inevitável, e que não permita respeitar os prazos dos procedimentos concorrenciais habituais, pelo que a contratação repetitiva ao longo de vários anos, usando este expediente, contradiz o espírito da lei, que pressupõe que as entidades públicas planeiem os seus procedimentos de forma a evitar ajustes diretos sistemáticos.

Nélson Roda Inácio, à esquerda (cumprimentando em 2016 o então presidente da autarquia de Pombal) foi nomeado subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira em 2015, tendo assinado todos os ajustes directos com a Samsic.

Além disso, nos casos em apreço, estamos perante a prestação de serviços de limpeza que constitui uma necessidade contínua e previsível. A renovação anual ou trimestral com o mesmo fornecedor, alegando urgência, demonstra assim ou uma incompreensível falta de planeamento ou uma estratégia deliberada para contornar os procedimentos normais de contratação pública, nomeadamente concursos públicos ou limitados por prévia qualificação. A renovação sucessiva com a mesma empresa cria também um ambiente de favorecimento e reduz a transparência e a concorrência, violando princípios fundamentais do Código dos Contratos Públicos.

O PÁGINA UM contactou o Ministério das Finanças para obter esclarecimentos adicionais sobre estes sucessivos ajustes directos, incluindo a razão pela qual nem sequer consta ainda no Portal Base a sustentação legal para os serviços de limpeza entre Julho e Outubro deste ano. De igual modo, procurou-se saber se o Ministério agora liderado pelo social-democrata Miranda Sarmento também usou despachos de algum secretário de Estado para ‘abrigar’ a continuação dos ajustes directos. Não houve resposta. Nem se sabe também qual o motivo para um concurso público para serviços de limpeza da AT, promovido pela Unidade Ministerial de Compras do Ministério das Finanças anda a ‘vegetar’ desde 2022.


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