Título
O coração pensante
Autor
DAVID GROSSMAN (tradução: Lúcia Liba Mucznik)
Editora
Dom Quixote (Novembro de 2024)
Cotação
18/20
Recensão
Uma das vozes literárias mais profundas e complexas de Israel, David Grossman é reconhecido tanto pela sua ficção quanto pelos seus ensaios e intervenções públicas. Nascido em Jerusalém em 1954, a sua carreira literária nota-se pela exploração das vulnerabilidades humanas e pelos dilemas éticos da sociedade contemporânea, transitando entre a dor íntima e o trauma coletivo, sempre com uma abordagem literária de fino recorte. Por isso, a sua obra transcende as fronteiras do conflito israelo-palestiniano – mas não a esquece, pelo contrário – e foca-se, amiúde, em questões universais como a perda, a memória e a procura de sentido em tempos de adversidade.
Nesta colectânea de ensaios intitulada ‘O coração pensante’, Grossman reafirma o seu compromisso com uma literatura que questiona e ilumina. A obra reúne reflexões, que se iniciam em 2017 e se prolongam até ao presente ano, com enfoque aos acontecimentos após 7 de Outubro de 2023, o enfoque do prólogo. Acreditando que a literatura deve ser um espaço de resistência à indiferença, uma forma de capturar a essência humana mesmo em contextos de desumanização. Os textos de ‘O coração pensante’, reflectem uma sensibilidade que vai além da emoção imediata para integrar pensamento, ética e acção.
Aliás, Grossman não se limita a explorar o sofrimento pessoal, não o explora para comover. Embora a dor seja um tema constante na sua obra, essa questão nunca aparece isolada; ela é contextualizada, analisada e, muitas vezes, transformada num convite à empatia, aparentemente impossível entre palestinianos e israelitas.
Embora ‘O coração pensante’ não seja um manifesto político, Grossman não se esquiva das questões mais prementes deste seu e nosso tempo. O conflito israelo-palestiniano atravessa as suas reflexões, mas não como uma mera análise directa, mas como cenário e palco inevitável, sendo que David Grossman se posiciona como um crítico tanto das políticas de ocupação israelitas quanto da violência por parte de extremistas palestinianos.
Em todo o caso, trespassa, desde logo no prólogo, escrito no dia 10 de Outubro do ano passado, um tom avassaladoramente crítico ao Governo de Netanyahu, que fere pela justa crueza: "Vejo também um profundo sentimento de traição. A traição dos cidadãos pelo seu governo. Traição a tudo o que nos é caro, a nós enquanto cidadãos, enquanto cidadãos deste Estado. Traição no sentido específico e vinculativo da palavra. Traição à garantia mais cara de todas – a lei nacional do povo judeu – que foi entregue aos seus dirigentes para salvaguarda, e que eles deviam ter tratado com reverência. E em vez disso, o que vimos? O que é que nos habituámos a ver como se fosse normal e inevitável? O que vimos foi o abandono deste país em benefício de interesses mesquinhos, de uma política cínica, tacanha de espírito e delirante. O que acontece hoje é o preço que Israel paga por se ter deixado seduzir durante anos por uma governação corrupta, que o conduziu de fracasso em fracasso. Que corroeu as suas instituições de direito e justiça, os sistemas militar e de educação; que estava disposta a colocá-lo perante um perigo existencial, a fim de salvar o primeiro-ministro de ser preso. Basta pensarmos naquilo em que colaborámos durante anos. Na energia, pensamento e dinheiro que desperdiçámos vendo a família Netanyahu representar o seu drama estilo Ceaușescu. Nas fraudes grotescas que ela encenou perante os nossos olhos estupefactos."
E, não esquecendo a barbárie do Hamas, há muitas críticas mais que sibilinas a Netanyahu, a quem os ataques terroristas serviram para a sua salvação política. "Nos últimos nove meses”, salienta Grossman, “milhões de israelitas manifestaram-se semanalmente contra o governo e contra o homem que o chefia. Foi um processo extremamente importante que exigia devolver Israel a si próprio, à grandiosa ideia que está na base da sua existência: criar um lar para o povo judeu. E não um lar qualquer: milhões de israelitas queriam criar um estado liberal, democrático, amante da paz, pluralista, respeitador das crenças de todos os homens. Em vez de escutar o que o movimento de protesto propunha, Netanyahu preferiu desacreditá-lo, chamar-lhe traidor, incitar contra ele e aprofundar o ódio entre as partes. Mas aproveitou todas as oportunidades para declarar o quanto Israel era forte, determinado e, acima de tudo, preparado, preparado para enfrentar qualquer perigo. Diz isso agora aos pais loucos de dor, ao bebé atirado para a berma da estrada. Diz isso aos reféns, pessoas partilhadas como rebuçados entre as diferentes organizações terroristas. Diz isso aos que te elegeram. Diz isso às oito brechas no muro de fronteira mais sofisticado do mundo”.
E continua, assertivo, virando-se para o Hamas: “Mas não se pode errar e confundir: com toda a ira contra Netanyahu, os seus pares e os seus métodos, não foi Israel que causou aquele horror. Foi o Hamas quem o causou. A ocupação é certamente um crime, mas prender centenas de cidadãos, crianças, pais, idosos e soldados, e depois passar por eles um a um e disparar sobre eles a sangue-frio – é um crime muito mais horroroso. Na hierarquia do crime também há ‘graus’”.
Lidas as crónicas, fica-se no fim com uma estranha sensação sobre a impossibilidade para um fim do conflito. Num dos ensaios, um discurso pronunciado na Praça Habima, em Telavive rem Maio de 2021, um Grossman profético sentencia: “Nós, os israelitas, ainda recusamos entender que terminou a era em que a nossa força pode decidir uma realidade cômoda apenas para nós, para as nossas necessidades e interesses. Será que a última guerra nos convencerá finalmente que, de certo ponto de vista, a nossa força militar já quase não é relevante? Que não importa quão grande e pesada é a espada que empunhamos, no final de contas qualquer espada é uma espada de dois gumes?”
No final de 2024, vemos que essa faca de dois gumes continua a dilacerar a Humanidade.