A HISTÓRIA POSSÍVEL DE BENGUELA: uma novela (II)

A ingénua busca do Eldorado

landscape of trees and mountain

por Pedro Almeida Vieira // Dezembro 26, 2024


Categoria: Cultura

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Infiltrara-se em Artur Matos uma inquietação quase impercetível desde que aceitara a encomenda de Elias Mukuba. Não era apenas o peso da tarefa, ou as sugestões habilidosas do angolano que se impunham como exigências. Era algo mais profundo, uma sensação persistente, uma moinha incómoda que o observava com um olhar inquisidor e de desconfiança sempre que estava não apenas a escrever, mas também a respirar.

Embora estivesse em África há mais de dois anos, somente na primeira conversa com Mukuba, e consequente início da feitura do livro, Artur sentiu que estar numa terra outrora subjugada pelos seus antepassados era uma forma de exílio peculiar. Não era exilado de um território físico, mas de um lugar onde a sua voz pudesse ser ouvida sem suspeição.

Essa desconfiança, compreensível e desconfortável, andava agora a assombrá-lo. Reconhecia que, como português, carregava o fardo de uma História que nunca vivera, mas cuja sombra parecia inevitavelmente moldar a sua presença. Mais do que uma barreira de comunicação, era um abismo moral. Como alguém que herdou o privilégio e a memória selectiva de uma potência colonial, poderia ele contar a História de Benguela com a autenticidade que Mukuba exigia?

A questão não era apenas intelectual; era visceral, uma colisão entre a vontade de narrar e a impossibilidade de o fazer sem ser julgado. Artur tentava racionalizar o paradoxo. Afinal, as palavras eram livres, não eram? A linguagem, pensava ele, constituía, assim com esse tom formal, a ferramenta universal para superar as barreiras da História e das identidades. Porém, esta certeza tremia, ou soçobrava mesmo, quando confrontada com a verdade de que as palavras que escolhia carregavam o peso das escolhas que outros fizeram antes dele.

Por exemplo, como explicar, sem paternalismo, sem nostalgia ou heroísmo, o avanço dos portugueses pela costa africana? Como descrever sem cair no erro de romantizar o roubo ou de demonizar a sobrevivência? Cada linha que escrevia parecia uma ponte frágil sobre águas tumultuosas.

E havia ainda a questão da vontade própria. Mukuba, com a sua presença imponente e as críticas afiadas, tinha um poder que não era apenas editorial. Ele era o filtro entre Artur e o público. Seria possível encontrar a verdade na História de Benguela sem essa verdade relatada por um escritor alóctone passar pelo crivo de um editor autóctone? Artur já se conformara que, ali, não se livraria de responder, ou corresponder, a vontades alheias, tanto as de Mukuba quanto as da História maior que pairava sobre ambos.

E foi nesse estado de espírito que Artur escreveu, reescreveu, reformulou, poliu e refinou o segundo capítulo da História de Benguela, embora ciente de que qualquer palavra arriscaria ser palco de uma batalha entre o que queria dizer e o que seria aceite.

Os portugueses foram, de facto, os primeiros a olhar para a costa africana com os olhos gulosos de quem procura tesouros onde antes havia apenas lendas”. Esta frase inicial, tão cuidadosamente pensada, permanecia no texto, mas já lhe parecia carregar uma intenção com diversas leituras. Artur sabia que as palavras não podiam apenas relatar os factos; precisavam de reconhecer as nuances, os desalinhamentos de poder e as perspetivas que eram frequentemente varridas para debaixo do tapete.

Portanto, na reunião semanal, foi ali logo que Mukuba encalhou.

– “Tesouros onde antes havia apenas lendas”? – começou, pousando o manuscrito com uma leveza que desmentia o peso das suas palavras. – Parece-me, Matos, que continua a escrever com os olhos cobiçosos dos seus antepassados, de quem chegou para explorar, e não de quem sofreu a exploração.

Artur, já habituado às críticas, manteve a compostura. Sabia que responder impulsivamente seria um erro.

– É uma forma de enquadrar a perspectiva europeia sem a endossar – argumentou, controlando a voz. – Não digo que havia apenas lendas, mas que era assim que os navegadores viam a costa. Para eles, era um mapa em branco, mesmo que não fosse. Acreditavam que a seguir ao Bojador, o abismo os engoliria…

Mukuba inclinou-se para a frente, os olhos semicerrados como se tentasse avaliar até onde Artur acreditava naquilo que dizia.

– Muito bem, mas pergunto: e para os que viviam aqui? Acha que o “mapa em branco” não tinha já marcas de sangue, comércio e pertença? É isso que tem de mostrar, Matos. Senão, o seu texto será só mais um a perpetuar a história de uns indignos vencedores.

Artur não tinha resposta imediata, mas percebias as razões de Mukuba. A dificuldade estava, porém, em encontrar a forma de equilibrar a narrativa, que mostrasse, sem ofender mais, que existiam diferenças de tecnologia, de avanço entre europeus e africanos naquelas épocas. Manteve-se calado, a escutar enquanto o editor dissertava.

– Matos – continuou Mukuba, já num tom de quem conversa com um adolescente preguiçoso –, “tesouro” não é apenas ouro, prata e pedras preciosas. Para os povos que aqui viviam já, o tesouro era a terra. Ou acha que as conchas, o peixe, os zimbos, e até o sal não tinham valor? Tem de abandonar a lente do navegador europeu.

Artur respirou fundo. De todas as frases que ouvira até então, esta era a que mais o enervava. “A lente do navegador europeu” era quase um insulto, e Mukuba detinha um talento especial para atingir nervos expostos. Artur viu-se a reagir.

– Elias, desculpe dizer-lhe, mas se a tarefa é contar a História de Benguela, tem de se começar com os navegadores. Foram eles os primeiros a registar, em escrita, o que encontraram.

Mukuba apoiou-se na cadeira, os dedos entrelaçados em frente ao rosto, os olhos semicerrados como se fosse um professor cansado das desculpas de um aluno.

– E os que já estavam lá, Matos? Não percebe que a História já estava escrita, mesmo que não com a sua preciosa tinta europeia? – Mukuba inclinou-se ligeiramente, os dedos a tamborilar na mesa. – Cada sulco no chão, cada canção que ecoava nas libatas, era já uma linha dessa história. Vocês, europeus, só chegaram e rasgaram as páginas.

Artur abriu a boca para ripostar, mas Mukuba levantou a mão num gesto que dizia, sem palavras, que ele ainda não tinha acabado.

– E já agora, se vai usar o termo “temeridade”, explica-me isto: o que é mais temerário, Matos? Navegar mares desconhecidos ou sobreviver ao saque e à pilhagem de invasores que chegam com armamento que nunca viram na vida?

Caiu um silêncio na sala. Elias gostava de pausas dramáticas, mas Artur não lhe queria dar o prazer de o sentir intimidado. Ajustou os papéis que tinha à frente como quem afirma que ainda detém o controlo.

– Concordo que sobreviver é bastante temerário nessas circunstâncias – concedeu Artur, sabendo que, em situações como aquela, a diplomacia era uma excelente maneira de salvar o pouco de auto-estima que ainda tinha, sentindo que os dólares lhe faziam falta se não os tivesse. – Mas isso não anula o feito de desafiar o Cabo Bojador. A História tem de reconhecer que havia coragem e ousadia no gesto dos portugueses.

Elias soltou uma gargalhada seca.

– Claro. Coragem e ousadia. Foi isso que motivou Gil Eanes e os seus patrícios – ironizou Mukuba, com um riso seco. – Coragem e ousadia. Não foi a vontade de agradar ao rei nem a ganância de ser o primeiro a trazer boas novas. Não, foi coragem pura, e a límpida ousados, virtudes desinteressadas, quase angelicais.

Artur não respondeu, desviou o olhar, ajustando os papéis à sua frente. Começara a habituar-se àironia afiada de Elias. Em vez de contra-argumentar, quis que ele avançasse para os parágrafos seguintes, onde nenhum tom apologético sobressaía. Artur mergulhara em relatos precisos sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, que em 1483 avistara a foz do rio Congo. Era impossível, julgava, não se fascinar com os detalhes: os padrões erguidos nas praias, as trocas hesitantes entre marinheiros e nativos, e até a audácia de levar reféns para Portugal, como se fossem amostras de uma terra distante. Era História pura, com todas as suas contradições.

Mas, claro, Mukuba tinha as suas opiniões.

– A sua narração parece um diário de aventura, Matos. – Ele apontava com o lápis para o parágrafo onde Artur descrevia os “encontros cautelosos” de Diogo Cão com os nativos. – “Cautelosos” é uma palavra gentil, não acha? Especialmente quando sabemos que esses encontros acabavam com reféns e pilhagens.

– Elias, tentei equilibrar o tom. Se for demasiado crítico ou cáustico, ninguém vai ler isto sem pensar que é propaganda.

– Propaganda, Matos? Chamar as coisas pelo nome é propaganda? Se os portugueses capturaram pessoas, então escreva: capturaram. Não diga “acolheram” ou “receberam”. Escreva: roubaram.

Artur saiu da reunião com mais um maço de dólares, e enfiou-se em casa. E assim os padrões deixaram de ser símbolos de progresso para maculados marcos de uma posse ilegítima. E as viagens, que antes soavam como jornadas heróicas, tornaram-se episódios de exploração mascarados de descoberta.

Dias depois, enviada a versão revistas, Mukuba ligou-lhe.

– Vê, Matos? Nem eles encontraram o ouro que procuravam até Angola, e isso porque estavam cegos pela ganância. A verdadeira riqueza de África sempre esteve nas pessoas, na terra, na cultura. Mas isso nunca foi suficiente, pois não?

Artur não respondeu logo. No outro lado da linha, fechou os olhos por um momento, tentando não explodir.

– Elias, este livro tem de ser um diálogo entre o que sabemos hoje e o que foi feito na altura – retorquiu Artur, controlando a voz –. Não posso mudar o passado. Só posso contar a História.

– Mas a História tem sempre duas faces: uma História certa e a uma História errada, Matos. E a História certa não é só a dos conquistadores; é a de quem resistiu.

No final, mais uns dias transcorridos, o segundo capítulo tornou-se uma narrativa de desencontros. Relendo o texto antes de o enviar a Mukuba, Artur sentia um desconforto crescente, como se cada frase cedida fosse também uma concessão da sua integridade enquanto escritor. Era verdade que o texto estava mais equilibrado, mais sensível às vozes e sensibilidades de quem resistira, mas a sensação de perda da sua autonomia permanecia.

Ele questionava-se: onde terminava a honestidade histórica e começava a imposição de uma narrativa alheia? Seria ele um escritor genuíno ou apenas um escriba a soldo, como constava terem sido os cronistas de antanho, moldando as palavras para agradar à crítica do poder e às expectativas de uma leitura contemporânea? Cada linha parecia agora carregada de um peso que não lhe pertencia inteiramente, como se a sua voz fosse agora somente um fino eco moldado pelas vontades alheias.

Ao ceder à inclusão do diálogo ficcional entre Diogo Cão e o soba, Artur sentiu-se especialmente vulnerável. Não que o diálogo fosse desonesto ou inverosímil – pelo contrário, ele sabia que trazia vida à narrativa –, mas a sensação de ter sido forçado a imaginar aquelas palavras fazia-o questionar a fronteira entre História e ficção.

No entanto, outra parte de si sentia-se estranhamente orgulhosa. A versão final, por mais distante que estivesse da sua visão inicial, parecia mais completa, mais fiel à complexidade dos eventos que narrava. Era como se o conflito com Mukuba fosse uma espécie de cadinho literário, onde a sua escrita era testada, desafiada e, no fim, refinada. A questão primordial se mantinha, porém: até que ponto essa, diga-se assim, maturidade não era, na verdade, uma capitulação? Enquanto imprimia o manuscrito, Artur sentiu-se dividido entre a sensação de ter criado algo de valor e o receio de que, ao fazê-lo, tivesse traído algo de essencial em si mesmo. “Talvez escrever História não seja diferente de navegá-la”, pensou, um sorriso cansado surgindo no canto dos lábios. “Ambos exigem que nos adaptemos às marés, mesmo quando elas nos afastam da rota que julgávamos certa.”

Artur terminara o capítulo com a chegada dos portugueses à região de Benguela, ainda esperançosos de ambição, mas prenunciando hostilidades e desilusões. Tudo isto se tornara um compromisso desconfortável, mas necessário. E quando recebeu nova chamadade, Artur não conseguiu evitar perguntar, ao telefone, quando o editor lhe anunciou a aprovação:

– Está feliz agora?

Mukuba respondeu-lhe apenas:

– Não, Matos… Mas está melhor.

[continua…]


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