VISTO DE FORA

Milhazes: breve manual da tradução

person holding camera lens

por Tiago Franco // Maio 29, 2022


Categoria: Opinião

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Não sou grande agricultor, e percebo pouco da poda, mas tentei comprar um tractor numa ilha dos Açores. Mal entrei na loja, o senhor avisou-me que o simpático Husqvarna custava agora mais 5%. Perguntei porquê, apenas para ter o momento retórico do dia. Há três meses que todos sabemos a razão oficial para o aumento de qualquer custo: a guerra. A nossa guerra, note-se. As outras nunca mexeram nos nossos salários.

Educadamente, disse-lhe que algo falhava na equação. O tractor, feito a alguns quilómetros de minha casa, na cidade sueca que lhe dá o nome, terá por esta altura o mesmo custo de produção. Não há notícia de aumentos salariais de 5% na Husqvarna. A energia utilizada para o produzir não é fornecida pela Rússia, e, segundo sei, o metal também não vinha de Azovstal.

yellow and black heavy equipment on green field during daytime

O barco que o transporta para as ilhas portuguesas também não se move a combustível russo, e, logicamente, a pessoa que o tentava vender não terá recebido um aumento de 5% nos últimos 10 dias. Quiçá, nem nos últimos 10 anos.

Esta conversa aconteceu poucos dias depois de nova redução salarial. A banca, as financeiras, as seguradoras, todas as componentes do mundo empresarial aproveitam a onda e sobem os custos operacionais. Porquê? Porque podem.

Há uma desculpa válida e, embora não tenham de facto aumentos reais nos custos, todos aceitam a escalada de preços como natural. É o xico-espertismo na alta roda. Como é que as empresas aguentam o impacto? Simples, cortando nos salários dos trabalhadores.

Uma repetição, em parte, do que aconteceu durante a pandemia da covid-19. Os governos enviaram as pessoas para casa e ajudaram à subida do desemprego, cortes salariais e aumento da pobreza.

Talvez o problema seja meu, acredito que sim, mas começo a ficar cansado de pagar por decisões alheias.

Bem sei que não podemos ver o mundo pela análise individual, mas, não tendo qualquer voto nas decisões conjuntas de confinar, de pagar impostos para preencher a quota de 2% para a NATO, de impor sanções económicas, iniciar ou prolongar guerras, resta-me aceitar cortes salariais regulares em silêncio. E claro, ir ouvindo todos os dias que A ou B aumentou o seu custo por causa da Ucrânia.

É coisa que me aborrece, especialmente a 5.000 quilómetros de casa, quando dou por mim a trabalhar para pagar os dislates de velhos políticos com disfunção eréctil, e gosto por bombinhas.

Em princípio aplicaria aqui a tradução do Milhazes sobre a guerra – algum dia tinha que dizer qualquer coisa de jeito –, mas tentemos manter o nível até ao fim do texto. Só para dar menos trabalho ao editor…

Quando é que isto acabará? Aliás, como acabará? Nuno Rogeiro, que fala com Zelensky por interposta pessoa, segundo o próprio, diz-nos que a Rússia está a levar uma tareia. Não só falhou todos os objectivos como já perdeu um terço do exército. Vendo o entusiasmo com que faz aquele inventário dos carros de combate em chamas, eu fico sempre a pensar que os ucranianos estão quase a chegar a Moscovo.

O meu problema é que depois vou à BBC e outros canais onde não perguntam nada ao Rogeiro e, para meu espanto, naqueles mapas cheios de setas, a área russa não pára de crescer.

green wheat field under blue sky during daytime

Devagar, devagarinho, mas a coisa parece estar a ficar mais ou menos consolidada no Donbass. E nem a conversa das mortes em barda no lado russo parecem abanar muito Putin.

Aliás, os soviéticos que nos fizeram o favor de limpar os nazis em 45, tiveram mais mortos que todos os outros exércitos. Mas chegaram a Berlim. Portanto, com estratégia ou ao monte para cima das balas, os russos não costumam deixar o serviço a meio. Mas enfim, vou ver se consigo beber do mesmo sumo que o Rogeiro leva para o estúdio da SIC, para me animar.

Chegados aqui temos que discutir a solução. Putin enquanto conseguir vender petróleo e gás, vai andando. Zelensky enquanto for recebendo armas e dinheiro da Comunidade Internacional, também. Pelo meio aparece Kissinger, o artista, a dizer que é boa ideia os ucranianos cederem território e os Estados Unidos não tentarem humilhar muito os russos.

Como desatar este nó?

Quanto ao tractor: ficou na loja.

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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