Disse Dumas, no Conde de Monte Cristo: “A partir de agora, não viveremos mais, viveremos apenas mais depressa.”
E cá estamos, depressa. Começamos a pensar sobre uma coisa, e logo vem outra. E outra. E mais outra.
Não chega a dar para pensar, simplesmente não há tempo.
Melhor que nos digam exactamente o que pensar, e que seja de fácil digestão, porque entretanto está um calor dos diabos (dizem que é o El Niño, ou isso era nos anos 90; agora chama-se alterações climáticas, porque o Al Gore no seu jacto privado disse num documentário que estávamos à beira do fim do Mundo), ainda tenho de ir comprar pão (e o pão está tão caro!), às tantas ainda me esqueço de pôr a máscara (mais vale nem tirar!), e a culpa não é minha, que faço o melhor que posso e creio que tenho bons valores e sentimentos (e a culpa é do Putin, que é um louco e veio arruinar a nossa paz!)…
Jorge Dias foi um antropólogo português com um trabalho extraordinário. Nascido e criado no Porto, cedo contactou com o interior de Portugal e nos seus estudos, na Alemanha, familiarizou-se com a etnologia regional (volkskunde), pensamento essencial ao longo do seu trabalho e vida.
Como quase todos os da sua geração, por serem poucos e notáveis, o Estado Novo foi quem mais lhe encomendou diversos estudos que procuravam informar a propaganda do regime. (Ou por outras palavras, estudos que validassem ideias e ideais pré-concebidos, um exercício intelectual interessante, mas pobre, muito em voga nos dias de hoje e apelidado de “especialista”, contrário a uma honesta busca de conhecimento.)
As vantagens destes patrocínios é que, com o jogo de cintura correcto, conseguia-se aproveitar a oportunidade para levantamentos de dados essenciais à compreensão dos diferentes temas, e ainda era possível defraudar o intento propagandista do regime, posto que às mentes “poucochinhas” dos nossos líderes não sobrava densidade suficiente para entenderem entrelinhas.
Com a sua obra “Estudos do Carácter Nacional Português” – tal como Fernando Távora com o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa –, Jorge Dias conseguiu levantar extensivamente uma monografia sobre a cultura portuguesa – que o Estado pretendia que atestasse a “raça” e a “nação” –, ao mesmo tempo que apresentavam a conclusão final de que somos todos diferentes, com múltiplas facetas, modos de viver, de construir, enfim, de ser.
Dizia Dias que, embora pesasse que a “Nação” também nascesse em virtude da vontade política de um príncipe – com certa dose de megalomania –, o facto é que Portugal só se mantinha coeso graças ao Atlântico.
Esta atracção enorme pelo mar amontoava no litoral as populações, abandonando o interior, mas também evitando a absorção do pequeno rectângulo por Castela.
É por isso facto que eu, nascida e criada no Porto, me espantei ao chegar a Trás-os-Montes e ver tanta gente proclamar, com veemência, que mais valia serem espanhóis!
Facto é que ainda não tinha visto a outra interpretação do que Dias tinha dito. Não conseguia ver, porque ainda tinha uma lente de nacionalismo ou patriotismo que me impedia de ver dessa forma. (Nós podemos ver de tantas maneiras).
Achava eu que era real essa coisa da “Nação” ou da “Pátria”, enquanto o senhor transmontano, defronte de mim, apenas sabia o que tinha vivido.
Entre o ter ido a salto para a França, por viver na miséria cá, entre o ter de ir a Espanha, para poder pagar o gasóleo ou fazer compras (pois, na altura, nem tão pouco havia autoestrada que o trouxesse ao Porto ou até Vila Real em tempo útil), entre ver o amendoal ser deitado abaixo por conta de contas comunitárias, entre ter de rapar os fundos da reforma que França lhe pagava para poder pagar a um médico privado em Portugal (caso contrário bem ficaria sem a consulta); entre tudo isto, o que era isso de “Portugal”?
Ensinou-me muito, este senhor transmontano. Por isso lhe agradeço.
Agradeço porque partilhou comigo a vida dele, e as experiências dele, e me ensinou, como o Lennon nunca realmente conseguiu, a perguntar o que era isso das fronteiras, e o que era isso dos países. O que era isso da “comunidade”…
Sensatez desta não brota do chão e não se compra; é fruto da vida sem pressa e do pensamento com calma. Por isso Pessoa nos dizia que o seu mestre era na verdade o guardador de rebanhos, Caeiro.
Então digam-me o que é isso da fronteira na Rússia e na Ucrânia? E o invasor e o invadido? Vamos continuar a fingir que não se esteve a debater diferentes lentes de propaganda nacionalista e que havia alguma espécie de envolvimento legítimo emocional ou moral da parte dos nossos líderes? Havia algo que não os famigerados interesses?
Havia algo que não uma inicial aparente incompetência dos líderes europeus, e agora uma clara maldade em não defender os direitos e bem-estar dos seus constituintes?
A France24 mostrou, há cerca de uma semana, imagens de ucranianos em Lysychansk a receberem as tropas russas com acenos de alívio e alegria.
Será que quem defende a russofobia em Portugal é o mesmo tipo de pessoas que viram costas aos transmontanos portugueses? Até porque o futuro está no mar (e segundo Dias, o passado também), e serão mais velhos, flores secas, florestas abandonadas e pouco importa.
Mas não se espantem que, caso perguntem, “como é que era, se Espanha invadisse?”, recebam a resposta “eles que venham: oxalá!”
Enquanto isso, os nossos velhos morrem. Morrem sozinhos. Morrem ao abandono, esquecidos, com sede.
Enquanto isso, o nosso país arde, famílias perdem tudo, o ar perde-se em colunas de fumo.
E o que dizem os nossos líderes? Não é culpa deles. É das alterações climáticas. É do vírus, este, aquele, qualquer um deles. É da Rússia e do louco do Putin. E dos comunistas. E das taxas de juro. E dos socialistas. E da oposição. E do Chega. E dos fumadores. E dos negacionistas. E minha. E tua!
E deles? Ai, isso é que não é!
Mariana Santos Martins é arquitecta
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