CRÓNICAS DE UM OFÍCIO SANTO

Afinal não ficou tudo bem

minuto/s restantes


Não está tudo bem. Não ficará tudo bem.

Creio que uma das principais diferenças entre o passado e o presente é o facto de estarmos a viver na Idade Global – e não na Antiguidade, nem na Idade Média, nem na Idade Moderna, nem na Idade Contemporânea.

Uma Idade Global em que quase tudo se espalha pelo planeta num espaço de 24 horas – e em que a comunicação real demora menos de um minuto para dar a volta ao globo terreste. Aliás, somente na velocidade do conhecimento e da transmissão, a pandemia foi (ou está a ser) diferente de qualquer uma das anteriores. E hoje, tal como foi ontem, temos economias destruídas e perturbações no quotidiano. Mas, ainda assim, a todas as pandemias os seres humanos sobreviveram e, de quase todas, se vão esquecendo.

red and black car in tilt shift lens

Pode parecer irónico falar de esquecimento quando estamos a viver na primeira pessoa, conscientes de que, possivelmente, ainda não passou a pior parte. Agora, depois do medo a que fomos sujeitos, o pior está para vir – principalmente quando soubermos a verdade, quando tivermos acesso a outros ângulos de uma mesma verdade, quando estivermos informados.

Mas, sem querer dispersar, recordo que logo que surgiram arco-íris às janelas escrevi uma crónica no Jornal i que intitulei “Não vai ficar tudo bem” – e não ficou.

Continuo a acreditar que a pandemia, sendo uma porta para a mudança, não é por si um ponto de viragem radical. Exemplo disso foi o infeliz aumento de casos de violência.

Nos lares, onde deveria imperar o amor, houve espaço para a contradição. Contradição que se estende de casa em casa, de rua em rua, de cidade em cidade. A humanidade pode estar à beira da extinção, mas parece que ninguém deu por isso.

A preocupação é, e sempre foi, com a economia, com o dinheiro, com o poder, com a supremacia. A ordem continua a ser: consumir! O sonho continua a ser pautado pela ideia de prosperidade. A receita é simples: acreditar no que nos dizem e seguir em frente. Ordeiros. Sem fazer perguntas. Condicionados.

Mesmo assim, em relação ao passado, temos mais liberdade, melhores condições de vida, mais oportunidades a todos os níveis.

man sleeping on bench in the middle of the street

Mas, em troca, tornámo-nos escravos do dinheiro, obcecados, doentes, desequilibrados. Sim, estamos doentes e ainda por cima, além de não reconhecermos isso, não aceitamos o remédio. É como se soubéssemos onde residem as células malignas que nos matam e não estivéssemos dispostos a sofrer para as arrancar.

Pelo contrário, deixamo-nos levar pelo sofrimento não dando espaço ao amor. E sim, é de amor que devemos falar. Amor que tudo suporta e que tudo supera. Amor que, segundo a nossa natureza animal não nos conduz a uma vida isolada e fechada sobre si, mas antes a uma experiência de comunidade. Neste ponto o amor estende-se ao próximo na forma de caridade, solidariedade ou em última análise de fraternidade.

Refiro-me ao amor que, por ser amor não é egoísta, nem mentiroso, nem manipulador. Um amor que não nos prende ou engana como os espelhos ainda que ao ver o nosso próprio reflexo num objeto seja fascinante. Este gesto habitual pode trazer consigo uma inquietação em torno da pergunta filosófica: “quem sou?”. Por princípio, podemos afirmar que o espelho não mente, já que nos revela a verdade que se apresenta diante de si.

Em tom de conclusão, relembremos a história da Branca de Neve. Nela, a bruxa pergunta ao espelho: “espelho meu espelho meu, há alguém mais bela do que eu?” Sim – respondeu-lhe o espelho deixando-a devastada. É aterrador quando nos dão a resposta errada. Errada, na medida em que não era aquela que desejávamos ouvir.

person holding clear glass ball

Já alguma vez vos aconteceu chegar a casa, olharem-se ao espelho e perceber que afinal uma certa peça de roupa não fica assim tão bem? É justamente aqui que reside o ponto. Há espelhos que nos mentem. As lojas de roupa ou os ginásios que o digam, são autênticas máquinas de distorção da realidade.

Ainda sou do tempo da diversão da casa dos espelhos na Feira Popular. Lá, todos os espelhos eram assumidamente mentirosos e apesar de tudo, divertíamo-nos muito com isso. Talvez pelo descaramento da mentira. A quem não se recorda ou nunca conheceu este divertimento, explique-se que era um circuito labiríntico de pequenas salas de espelhos que brincavam com as nossas formas, faziam-nos gordos, magros, cabeçudos, anões ou gigantes… Riamo-nos das mentiras que nos contavam. Sabíamos que lá no fundo tudo aquilo era ilusão.

O problema surge quando olhamos para os espelhos mentirosos e acreditamos que aquilo que estamos a ver é verdade. Em última análise, não é o espelho que nos julga, mas a nossa consciência. A mesma consciência que nos acompanha e pressiona a cada decisão. A mesma consciência que nos obriga a seguir os padrões de beleza e de verdade que alguns cretinos tiveram a liberdade de definir.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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