EDITORIAL

Da utilidade e dos fretes da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para a consolidação de uma Democracia Fantoche

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Julho 22, 2022


Categoria: Opinião

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Perante as sucessivas recusas do Ministério da Saúde, e particularmente da Direcção-Geral da Saúde, em ceder qualquer tipo de informação fidedigna e factual em redor da gestão da pandemia e do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia, tomei uma decisão. Simples, legal e constitucionalmente: solicitar arquivo aberto ao Ministério da Saúde.

Requeri assim, em 2 de Junho passado, à ministra da Saúde, Marta Temido, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), toda a “correspondência oficial, pareceres, relatórios e outros documentos escritos ou em formato audiovisual, na posse do Ministério da Saúde (e respectivas Secretarias de Estado), por si elaborados ou elaborados por outras entidades públicas e privadas, ou mesmo por particulares (incluindo assessores e consultores), produzidos desde Janeiro de 2020 até à data.” E elencava um conjunto de entidades a quem esses documentos tivessem sido remetidos ou que tivessem enviado para o Ministério da Saúde.

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É muita informação? Claro que é! Mas essencial para conhecer os meandros de um Governo opaco que nos faz viver numa Democracia do faz de conta.

Ora, que fez a senhora ministra?

Cinco dias depois, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde respondeu-me, dizendo que considerava  “manifestamente excessivo, abusivo e, logo, inexequível”, acrescentando que assim “não nos é possível satisfazer o solicitado”. Retorqui, explicando ser temerária essa postura num Estado de Direito recusar pedidos dessa natureza a jornalistas.

A senhora Marta Temido – que, aliás, tutela entidades que sistematicamente obstaculizam acesso à informação – mudou de estratégia. E, assim, no dia 15 de Junho informou-me que tinha feito um pedido de parecer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos – uma entidade supostamente defensora do arquivo aberto da Administração Pública, mas muito ciosa de interpretações enviesadas quando se trata de matéria delicada.

Nada contra, porém, o Ministério da Saúde pedir esse parecer.

Mas, obviamente, sucede que, sabendo eu como a CADA “trabalha” em matérias delicadas – ao que acrescenta a morosidade na emissão de pareceres e ao facto de os seus pareceres não serem vinculativos –, tomei a decisão de avançar de imediato com um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 24 de Junho.

Uma “chatice”, suponho, para o Ministério da Saúde, mas que, na verdade, se resolveu facilmente. A CADA, que costuma fazer “marinar” os seus pareceres longos meses, desde o pedido até à emissão do parecer, demorou apenas 24 simples dias para elaborar um parecer a preceito para o Ministério da Saúde. Acredito que deve ter sido um recorde de produtividade para aqueles lados.

E também quis ganhar tempo no Tribunal Administrativo alegando que ainda não recusara o acesso e que aguardava o parecer da CADA, como se isso fosse relevante para a decisão.

Ah, e a CADA nem se incomodou a ouvir a minha perspectiva; somente me enviou hoje o dito parecer.

E o que diz o parecer? Muita coisa, que prova como são esguios e enviesados os campos da transparência e da ética, mas deixo aqui as conclusões.

A dimensão do acesso solicitado implicaria, para a entidade requerida [Ministério da Saúde], procedimentos ou consequências que parecem exceder o limite aceitável, à luz de um são e avisado critério ético-jurídico do que é o direito de acesso. Assim, não se afigura que a entidade requerida tenha que satisfazer o pedido nos termos em que foi inicialmente formulado”.

Em trocados: a CADA defende que, não se conhecendo detalhes da documentação de um Ministério, não se pode ter acesso. Portanto, eis a receita: esconda-se tudo, porque assim se justifica não se conhecer nada.

Ou, se não defende, fez um rico frete.

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Obviamente, este parecer – que deve ir para os anais da pouca-vergonha democrática – poderá ter um peso nulo no Tribunal Administrativo de Lisboa. Confiemos na juíza que recebeu o processo, e na sua (assim espero) independência.

Aliás, este é um daqueles processos que, ganhando-se ou perdendo-se, serve muito para responder a uma questão fundamental, que é a seguinte:

Somos mesmo uma Democracia Plena ou uma Democracia Fantoche?

Tenho medo que a resposta seja a segunda opção, mas não me surpreende se for.


N.D. A partir de hoje o PÁGINA UM deixará de recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, essa inutilidade. Não apenas por este caso, mas porque nenhuma entidade, até agora, cumpriu os pareceres (não-vinculativos) que dali saíram, mesmo quando nos foram favoráveis. Por esse motivo, passámos a recorrer directamente ao Tribunal Administrativo. Continuaremos a fazê-lo enquanto tivermos o apoio financeiro dos leitores para pagamento das taxas de justiça, dos honorários de advocacia e gastos administrativos. Como sabem, as verbas recolhidas pelo FUNDO JURÍDICO, na plataforma MightyCause, destinam-se exclusivamente para este propósito. Até este momento apresentámos sete processos de intimação.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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