Existem guiões, e os spin doctors sabem bem da poda. Durante meses, o Ministério da Saúde andou a esconder vergonhosamente o caos do Serviço Nacional de Saúde, não se importando em manipular informação, mutilar bases de dados e recusar documentos administrativos. O PÁGINA UM tem já vastíssima experiência nesta matéria. Tem lutado praticamente sozinho. Tem apresentado processos de intimação no Tribunal Administrativo para contrariar este estado de coisas.
Nesta linha, o PÁGINA UM esteve na linha da frente para denunciar o absurdo excesso de mortalidade deste ano. Com base em análises rigorosas, foi o primeiro órgão de comunicação social a apontar para a inédita sequência mensal de óbitos sempre acima dos 10.000 desde Novembro, com recordes absolutos em Maio, Junho e Julho. Mas também a denunciar que esse morticínio atingia proporções inconcebíveis no grupo etário mais idoso – um autêntico e criminoso gerontocídio – e que apresentava uma “consistência” não compatível com eventos climáticos ou circunstanciais.
Durante demasiado tempo, assobiou-se para o ar.
E só de mansinho, quando o silêncio se mostrava ensurdecedor, veio a comunicação social dita mainstream abordar a temática, mas numa primeira fase sem citar o PÁGINA UM. Dedo dos spin doctors. A razão não se deveu apenas à falta de ética jornalística – existe uma regra de “convivência” na imprensa que “obriga” a citar o primeiro que destaca um tema fruto de investigação. De facto, ignorar a investigação do PÁGINA UM – que, desde o início, apelou para a realização de uma investigação que não ouvisse a “raposa sobre como morreu a galinha” –, serviu também para formar e consolidar uma “narrativa oficial”.
Por “narrativa oficial”, leia-se dissertações e especulações da Direcção-Geral da Saúde e de “peritos de serviço” – estes últimos predispondo-se a usarem as suas universidades como “cátedra” e o seu estatuto de cientistas como “bengala” para distribuírem bitaites convenientes ao Governo (porque nunca sustentados em dados mas apenas em meras opiniões, por vezes absurdas).
Lamentavelmente, os dois últimos anos vieram politizar e mercantilizar a Ciência – e um bom (no sentido de mau) exemplo encontramos no presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Perante tantas evidências da existência de um mastodôntico elefante – excesso grotesco de mortalidade – veio Fernando Almeida em auxílio do obscurantismo do Governo defender que esse excesso de mortalidade não se pode fazer “comparado apenas números” e avisando que “é impossível fazer uma análise séria e cientificamente consistente em dois ou três meses”.
Claro que pode. E não só pode, como deve. Basta começar olhar, com transparência e rigor, para as causas de morte no Sistema de Informação dos Certificados (SICO). Está lá tudo, diariamente, semanalmente, anualmente. Pode-se fazer comparações, analisar com detalhe os desvios mais relevantes das causas das mortes, detectar em que faixas etárias tal sucede, que regiões ou mesmo concelhos se observam os casos anómalos. Pode-se fazer tudo isto, com tecnologia informática e especialistas independentes (e que querem mesmo saber e não esconder), em muito pouco tempo.
Mas o tempo – esse escultor e esse julgador – é o grande problema para os políticos. Num país que ainda nem sequer disponibilizou estatísticas decentes e rigorosas sobre as causas de morte em 2020 (aquilo que está disponível no INE é uma vergonha, e a Doutora Graça Freitas tratou há cerca de um ano de eliminar uma base de dados criada em 2019, a Plataforma da Mortalidade, cujo “cadáver” jaz aqui), tem-se horror à informação hoje, porque pode sempre ser comprometedora.
Deixe-se morrer hoje pessoas, que amanhã lamentaremos estatísticas – parece ser esse o lema do Governo. Mas não deveria ser auxiliado por cientistas.
Mas há quem se disponibilize sempre para tais tarefas. Por isso, haverá sempre quem, nas universidades, apoie o Governo a furtar-se ao escrutínio da sociedade, conseguir duas coisas: garantir o controlo absoluto sobre uma suposta investigação e definindo a priori o seu timing.
Nos tempos que correm, o Governo consegue sistematicamente atingir esse objecto com recursos a dois “instrumentos”: uma imprensa mainstream fofinha (que não questiona demasiado) e o suporte de peritos supostamente independentes, mas que estão, na verdade, comprometidos até ao tutano.
Nos últimos dias, tivemos mais um destes “pratos” servido: o Ministério da Saúde anunciou na sexta-feira passada, pela noitinha, ao sempre disponível Público (que, entretanto, teve a “amabilidade” de corrigir o seu texto original, passando agora a citar o PÁGINA UM) a realização de um “estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”.
Spin doctors a trabalhar: dois dias depois, novo anúncio, no mesmo Público, dizia-se que o relatório só ficaria concluído em 2023. Para as calendas, portanto.
Não tugiu nem mugiu a imprensa. Nem investigadores contra esta descarada estratégia do Ministério da Saúde: o anúncio de um estudo que serve exactamente para não se estudar nada de forma independente e rápida. Morra-se hoje para se lamentar nos livros de História.
Os spin doctors ainda fizeram mais: em artigo à parte, sempre no Público, arranjaram uma especialista de confiança para consolidar esta estratégia. E assim assistimos à conceituada demógrafa, Maria João Valente Rosa – professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e ex-directora do Pordata – a congratular-se com este “estudo” (chamemos-lhe assim).
Cito o Público: “O estudo ‘aprofundado’ sobre ‘os factores determinantes da mortalidade’ e sobre os ‘excessos de mortalidade’ observados desde o início da pandemia – que sexta-feira foi anunciado pelo Ministério da Saúde – merece os aplausos da demógrafa Maria João Valente Rosa. ‘Finalmente‘ vai ser dada ‘maior atenção às causas de morte’, reage a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.” Mais adiante, refere a especialista que “há aqui [no excesso de mortalidade] uma responsabilidade social que não importa descartar”.
Nem mais: um elogio, para começar, seguida de uma dica para descartar responsabilidades – e logo por uma conceituadíssima especialista, créditos firmados… e independente.
Claro que sim.
Somos todos independentes, e uns mais (in)dependentes do que outros.
Na verdade, começa a encanitar-me observar especialistas travestidos de independentes que, na verdade, deveriam pensar duas vezes antes de prestar declarações, ou avisar os jornalistas dos seus conflitos de interesses.
Com efeito, não está aqui – como em muitos outros casos que se passaram durante a pandemia – questões legais, mas éticas e de transparência.
Ao elogiar o anúncio de um estudo político sobre um excesso de mortalidade que poderá ter (ou terá mesmo) causas relacionadas com política governamental – acabando também por anuir no prazo da sua conclusão e indicando até hipóteses para dar a culpa a todos e a ninguém em particular –, Maria João Valente Rosa sabe que não é uma demógrafa, embora lhe interesse que a sua mensagem soe como uma demógrafa independente.
Mas ela não é só, perante o Ministério da Saúde, apenas uma demógrafa; é também uma empresária, sócia com familiares (inclusive com uma filha, que se apresenta ainda como consultora da DGS) da Koaki (que tem como marca a Social Data Lab) e da VR&DC Consulting.
Ora, no caso da Koaki, desde 2020, estabeleceu já três contratos com a DGS no valor total de 91.280 euros, a que acrescente um contrato já este ano com o INEM no valor de 39.450 euros, e mais um com a Lusa, no valor de 12.000 euros.
No caso da VR&DC Consulting há ainda um contrato com a DGS no valor de 15.00 euros (em 2019), mas mantém fortes relações comerciais com a Lusa (três contratos no valor total de 36.000 euros desde 2019) e com o AICEP (quatro contratos no valor de 193.127 euros).
Todos os contratos foram por ajuste directo ou por mera consulta prévia.
Sendo legítimo que especialistas possam explorar e manter relações comerciais com entidades da Administração Pública, talvez comece a ser hora de reflectirmos se podem eles “vestir” a pele de professores universitários independentes para dissertarem sobre temas delicados, sem que se saiba se os comentários são isentos ou afinal comprometidos. Se estão a fazer Ciência ou afinal acções de marketing, piscando o olho a futuros contratos.
N.D. Sobre esta matéria, coloquei questões à Professora Maria João Valente Rosa, que me respondeu. Porque se considera relevante para a reflexão que aqui se propõe, tomo a liberdade de colocar, na íntegra, tanto as perguntas como a resposta.
Exma. Senhora Professora Maria João Valente Rosa:
Sou jornalista e director do jornal digital PÁGINA UM.
Tendo lido as suas declarações de elogio à Direcção-Geral da Saúde pela realização de um estudo sobre a causa do excesso de mortes, mas que, ao contrário daquilo que seria expectável (até pela informação que existentes nos dados discriminados do SICO), só deverá ser conhecido em 2023, gostaria de ter a sua opinião sobre se considera que esse prazo é razoável ou se poderiam ser conhecidos resultados mais rapidamente.
Por outro lado, gostaria de saber se alguma das duas empresas de que é sócia foram contactadas pela DGS ou outra qualquer entidade no sentido de integrarem o estudo anunciado, tanto assim que em outras oportunidades tanto a Koaki como a VR&DC Consulting já tiveram contratos com a DGS.
Por outro lado, gostaria que me dissesse se, quando contactada pelos jornalistas, referiu (ou eles tinham conhecimento) das suas relações comerciais com a DGS.
Ficando a aguardar uma resposta, e estando disponível para receber outros quaisquer esclarecimentos, queira aceitar os melhores cumprimentos.
Pedro Almeida Vieira
15 de Agosto de 2022
Muito boa tarde.
Em resposta ao seu email, informo que, enquanto cientista e investigadora na área da população/demografia, respondi a uma jornalista do jornal Público a respeito de uma notícia que dizia que o Ministério da Saúde tinha decidido avançar com “um estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”. Na qualidade de demógrafa, considero muito importante a produção de conhecimento acerca do que se está a passar sobre as mortes em Portugal. Como tal, todas as análises ou estudos que contribuam para o efeito são de saudar, neste contexto.
Quanto às relações comerciais das empresas, não faço comentários sobre os clientes Koaki ou VR&DC Consulting.
Cumprimentos,
Maria João Valente Rosa
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa
16 de Agosto de 2022