Arquitectura dos Sentidos

De quem são os rios?

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Setembro 5, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Habituamo-nos a ver que as águas correm e que só temos de saber navegar o barco. Habituamo-nos que as águas sequem e comecem a rarear, ou que venham em bátegas e a turbulência nos impeça de atravessar em segurança. Por instinto gravado nas nossas células, é um hábito acharmos que tudo o que vivemos é natural.

É relativamente simples separarmos as águas do hoje, caso o barulho pareça por vezes demasiado: existe, hoje, mais que nunca, o mundo real e o mundo irreal.

man and woman standing on river

Podemos chamar virtual ao irreal, como se ainda houvesse algo de virtuoso ou potente, como o seu étimo nos conta, mas o facto é que não deixa de ser aquilo que é: irreal, o contrário da realidade.

Pessoas que aplicariam boas maneiras no trato umas com as outras, de repente perseguem-se por ruas e passeios irreais. Caminham, umas atrás das outras, com agressividade, e tentam rasteirar para que tombem de dentes contra o lancil de cimento (irreal). Proíbe-se o piropo no mundo (real), e vociferam-se discussões entre estranhos nas praças mais públicas deste mundo (irreal).

Ideias que não passariam de desabafos, suspiros, degraus num caminho, passam a ser uma comunidade, pesada e enorme como um paquiderme enraivecido a bramir a tromba na direcção de quem se atravesse na procissão.

O decoro perde-se. Jornalistas, homens (hominídeos) de letras, a quem entregamos a vigília da isenção, da transparência e da legitimidade, acham que podem, aparentemente sem ordem do pai tirano (será?), perseguir e borrar a pintura de colegas das artes e cultura. Zurram “zorro!”, levanta-se a condenação pública da multidão, mas como diz a má-língua: embrulha-se o peixe no dia seguinte com essa folha de jornal (mas isso é no mundo real).

pink leafed tree under the blue sky

Os que sobram no rio, afogam-se em torvelinhos. Podem falar que não se os ouve. Podem gritar que não se lhes admite. Podem calar, para prevenir. O exemplo fica dado: calem-se todos, cumpram as regras, serão felizes. De quem são os rios, afinal?

No meio da propaganda há sempre algumas verdades. Propaganda não tem de ser mentira. Tem apenas de ser uma poda eficiente. Um tesourar nas expectativas, um tesourar no movimento. O ser humano está construído à semelhança da restante natureza, no seu crescimento e na sua necessidade de movimento. O sistema cardiovascular, como rios, o cérebro como uma noz, o ar a entrar dentro dos nossos alvéolos pulmonares como um brócolo, braços a estenderem-se como árvores.

Mas a propaganda decidiu discordar disso, dessa relação absoluta (e real) do ser humano com o seu mundo natural, mesmo que na sua natureza esteja a imposição, a manipulação e a selecção artificial. Será problema antigo, talvez, a desconexão, ainda mais advinda da revolução industrial, entre o homem e a Natureza, não falta prosa e ciência (a antiga) sobre o tema. Não faltam sequer religiões – por alguma razão é muito comum que assentem muitas na ideia da expulsão de um jardim. Meu conhecimento por uma maçã, minha alma por um beijo, meu pecado por meus filhos.

Mas a propaganda pegou nessa ideia, juntou umas observações, notou outras ideias. E, como provavelmente sempre acontece, alguém reparou que era uma óptima oportunidade de negócio.

De que forma poderiam branquear manchas de óleo negro, aumentar lucros e criar uma histeria transgeracional? Uma simples ideia, que nem é mentira, basta ser podada como uma verdade conveniente: a pegada ecológica.

Por exemplo, o conceito da pegada ecológica foi criado pela British Petroleum (BP).

Essa mesmo.

A pegada ecológica pode ser uma mera ferramenta de medição de tudo. Um único morcego na Amazónia tem uma pegada ecológica apocalíptica para as populações de mosquitos. (E que jeitinho me fazia um, um morcego, agora aqui, em Aveiro.)

Num golpe de mestre, que conduziu a narrativa até aos dias de hoje, de repente a poluição atmosférica não era culpa “deles”. Era nossa, porque andávamos de carro (movidos a petróleo) e ainda por cima vivíamos longe do nosso trabalho (alimentado a petróleo).

brown sand with heart shaped print

O continente de lixo, que flutua no Oceano Pacífico, não era culpa das frotas pesqueiras industriais (movidas a petróleo), que monopolizaram o mar e largam toneladas de redes de nylon (feitas de petróleo) em cada rota. Era nossa, porque usávamos objectos de plástico (feitos de petróleo).

O transporte, abate e desrespeito pela vida animal (derivado do petróleo), após uma horrível vida de clausura, abuso e medicação forçada, não era culpa de uma indústria sanguinária que trabalhou sempre para criar excesso de oferta, excesso de procura, excesso de lucro e excesso, excesso, excesso. Era nossa, porque comemos carne, e tivemos filhos, e fizemos férias, e lavámos os dentes com uma escova de plástico colorido.

E a nossa camarada British Petroleum mudou as cores, para verde e amarelo, apresentou-se de cara lavadinha, de novi-bíblia debaixo do braço, e a frase “já pensou no Jesus das eólicas hoje?” Mostrou-nos a sua calculadora da nossa culpa, mediu-nos a pegada ecológica, e quantos planetas eram necessários só para nós, sozinhos!

ten birds sits on wire

Não contentes, como em todos os cultos, outros Golias seguiram o exemplo. Começou até a vir o brinquedo no happy meal e nas nossas escolas, e em breve uma geração, hoje adulta, aprendeu a regurgitar sem contestar, a vestir o molde sem pensar. Sem virar a capa do jornal e ver a quem pertencem os rios. Porque, simplesmente, a terra é assim, foi assim que lhes disseram que a terra era. Plana.

Mas, como os rios correm para o mar, quem é dono dos rios sabe que eventualmente a água se salga, a ferramenta é novamente usada para cavalgar o empreendedorismo e voluntarismo desta nova geração. Adoráveis e dóceis herbívoros que inovaram a indústria, os produtos, as soluções. Um sem fim de artigos, sistemas, estilos de vida que voltam a reconectar-nos com a Natureza, reduzem a nossa pegada e garantem que salvamos o mundo a tempo!…

E como sempre, alguém vê uma oportunidade de negócio, antes da terra ficar salgada como Cartágo.

people walking on sidewalk pathway beside road with vehicles and high-rise buildings during daytime

Agora, que populações histéricas, sob doses incríveis e nunca antes vistas de flúor, ansiolíticos, PLV e glúten, com o acesso mágico e transcendente ao tão desejado mundo irreal, estão na presença de um embate imenso entre impérios, agitam-se as bandeiras, quando na verdade, e digo-o numa angústia profunda de mãe, o resultado será sempre a tirania. Como em todos os rescaldos de um grande cisma.

Primeiro aterrorizam. Depois amordaçam. Por fim esfaimam.

E enquanto estamos nestes debates eternos, com o barquinho no meio do rio, os donos do mundo já têm o livro das revelações escrito, e já falam entre comparsas sobre a inevitabilidade da “restruturação” de tudo isto.

Agora já é tarde. Sobra enviar estas missivas em garrafas para a água. Esperar que outros náufragos as encontrem. Mesmo que vos calem.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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