Carlos Drummond de Andrade, poeta das Minas Gerais, nos revela: Os morros, empalidecidos no entrecerrar-se da tarde,/ pareciam me dizer que não se pode voltar/ porque tudo é consequência de um certo nascer ali. Depois de duzentos anos de uma independência bastante duvidosa – tanto pensando no evento em si, quanto nos muitos significados que o termo pode assumir, seguimos perplexos e desgovernados.
Atuei como médico do trabalho do maior hospital do Brasil, durante a pandemia de covid-19, uma instituição de 25.000 funcionários (muito mais que a população de muitas cidades ao longo do mundo), onde pudemos oferecer aos que ali se dedicavam a cuidar dos enfermos, tentando-os devolver a suas famílias – sem saber se voltaríamos intactos para as nossas –, um atendimento digno e um pronto-atendimento voltado às queixas respiratórias, que acredito que poucas empresas puderam proporcionar com tamanha eficácia.
O hospital é ligado à Secretaria de Estado da Saúde, de São Paulo, e por contingências e malabarismos políticos, pôde atuar independente da desastrosa condução da pandemia capitaneada pelo Ministério da Saúde do Brasil. Enquanto muitos viveram isolados, com medo do vírus, minha profissão – não por opção, acredito, mas por questão de ofício – projetou-me diretamente no olho do furacão da peste e das mazelas perpetradas pelo poder público.
O conceito de independência contrasta com a forma como a vida de quase 700.000 brasileiros foram entregues à doença. Os que morreram por falta de oxigênio, por falta de vacinas e por mensagens confusas incentivando a utilização de medicamentos ineficazes, não tiveram opção. Os desmandos criminosos nos fazem pensar que, talvez, vivemos sob um poder ditatorial cuja empatia pela vida inexistiu. Uma sociedade inteira refém de um psicopata que continua ofendendo mulheres, desprezando a fome, rindo desbragadamente da dor alheia, em cadeia nacional.
Não sou historiador e tenho dificuldades de analisar os últimos duzentos anos; porém os cinquenta mais recentes, que completo em poucos dias, parecem mais próximos para um olhar, ao menos, testemunhal. Acredito que a última vez que o Brasil teve alguma chance de se tornar algo menos triste ocorreu no início dos anos 1960, até a marcha rumo a um futuro promissor ser interrompida por um golpe militar financiado pela política econômica expansionista dos Estados Unidos da América.
Com o que se chamou de redemocratização, em 1985, interesses e manobras políticas foram solidificando uma forma paralela de poder, que recentemente se intensificou com o que foi chamado de Emendas do Relator, no Congresso Nacional do país, oferecendo bilhões de reais a políticos inescrupulosos, em nome de uma frágil manutenção do poder da atual administração. Enquanto esse tipo de arranjo perdurar, vejo muito pouca esperança na construção de uma sociedade menos desigual, com chances reais de acesso a meios educacionais para a grande massa de desvalidos, que geração após geração, arrasta-se em miseráveis esforços de sobrevivência.
Somos famosos pela beleza da nossa música, pela força da nossa literatura, por uma falsa alegria do nosso povo (somos vistos como bobos-alegres, que gostam de futebol carnaval e festejos), porém os últimos anos só escancararam o que João Guimarães Rosa, no longínquo ano de 1956, expôs em seu magistral romance Grande sertão: veredas.
Neste ano, Juscelino Kubitschek, o presidente bossa-nova, falava de desenvolvimentismos enquanto as entranhas da nação corroíam-se em chacinas. Somos um povo bruto, vingativo, violentamente cruel. O homem cordial, termo equivocadamente interpretado, tirado de contexto, da obra de Sérgio Buarque de Holanda, é uma peça de marketing mal-torneada, que não existe.
Tenho duas filhas pequenas, e vejo-me obrigado a pensar num futuro um pouco mais iluminado para elas, mesmo diante de tanta tristeza. Como em qualquer lugar do mundo, o caminho está em maciços investimentos em educação, saúde, saneamento, segurança – pública e alimentar. Não vejo medidas a curto, médio ou longo prazo em direção a tal reforma. Cabe a nós mostrar às filhas que o respeito às individualidades e o amor são os valores que podem nos redimir, se não como país, pelo menos como seres humanos.
Diante da barbárie, ressaltamos os gestos de ternura. E isto já é bastante, frente aos desafios imensos que há pela frente. Nos próximos meses, aproximam-se eleições – o Brasil é pobre na cultura do voto, somos pouco versados na arte do debate, escolhemos sem critérios, somos reiteradamente maus-eleitores. Porém, caso consigamos extirpar da presidência da república o cancro que nos envergonha internacionalmente, já seria um bom primeiro passo para os próximos duzentos anos de história.
Moacyr Godoy Moreira é médico, escritor e crítico literário, tendo publicado os livros de ficção Soalho de tábua, República das bicicletas, Ruídos urbanos e Soalho de tábua. Vive em São Paulo.
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