Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque a ruga no colarinho da camisa não deixa que te concentres na chama da vela junto ao caixão, e num funeral tão prolongado até o luto fica enjoado com o cheiro de flores e laca do cabelo, não havendo pois espaço para cheiros confortáveis e limpos.
Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque mesmo que mantenhas essa honraria de domingo no teu modesto lar, começa a ser urgente reveres teu gesto sempre que tenhas que pôr mais moedas no contador e dar à manivela para fazer faísca.
Também podes ir buscar brasas… O quanto perguntaste à tua avó como se vivia? Até me sento mais direita junto dela enquanto “avó, como fazias?” e por entre um gracejo rouco diz-me ela todos os truques de viver à míngua e construir uma vida, sorrisos, filhos, netos, bisnetos, um telhado sem goteiras e um chão com mais que terra batida.
Minha querida avó Mila. Esta fica para ti, que me dizias “açúcre” em vez de açúcar, só para me arreliar em pequena.
Sabes que os gatos têm inveja dos pássaros e, se murmuram miados na varanda ao vê-los passar, é porque se lamentam da sua pesada sorte de serem os caçadores e não a caça.
Rainhas, príncipes, princesas, corregedores, presidentes, ministros, senhores assessores. Tudo gatinhos com inveja de pardais, tão preocupados parecem viver com treparem ao topo da árvore para depois nem saberem descer. Quem os vir julga até que alguém precisa deles, aos ares que se dão, às adorações que movem.
Houve até uma madame que se fartou de fazer bonecos de cera à escala real de cada uma das figuras. Figurões. Figurinos. Fez mal!
Se era para usar cera espetava-lhes ao menos um pavio no cucuruto para nos alumiar as noites frias de inverno europeu! O que devia ter usado era caco! Vinha aprender umas coisas para os nossos lados e fazia figurinos de loiça destas tão poderosas criaturas, tão preocupadas em mandar. Mas pequeninos, assim, para caberem no louceiro. Umas miniaturas todas catitas a petrificarem estes seres tão importantes que ali ficam a servir de amparo ao pó dos dias, pousadas em filinhas ordenadas na prateleira de vidro para todos nós vermos, a Rainha e a Diana, o Gorbatchev e o Regan, o Biden e o Trump, o Putin e o Schwab…
Sabes que a arte de adicionar mais farinha nas pataniscas também se aprende com sorrisos.
O meu avô Moura um dia chegou mais cedo do trabalho com fome, viu um saquinho de pó branco em cima dos armários e assumiu que seria farinha. Estranhamente, ele bem que vertia o polme na frigideira, mas aquilo sumia-se!… Assim, puff!… como o nosso ganha pão hoje em dia!
Afinal era potassa. A minha avó tinha pedido que lhe dessem um saquinho para arear os tachos e o meu avô arruinou-lhe a dádiva na frigideira.
Típico. Assim, txi!… como os senhores dos bancos, e os gatos invejosos e os figurinos de louça (todos alinhados na prateleira, pó bem espanado, reduzidos à sua insignificância).
No fim do dia, das vidas e das mortes que se coleccionam, se tens ou não asas, importa muito que tenhas abrigo. Os abrigos e as casas não nascem nem brotam do chão. Constroem-se. E constroem-se conforme o terreno em que se querem pôr de pé.
Podes afundar estacas de madeira até terreno firme, podes compactar pesadamente em pedra líquida, podes até flutuar…
Mas sempre, sempre a tentar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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