Ahahah, pessoal!
Agora é que vai ser.
Apertem os cintos, que eu vou passar aqui umas boas de umas semaninhas a mandar vir.
Vamos lá ver, pobre também tem direito. E eu posso ser indigente, mas não deixo, por isso, de saber ler e escrever. E, além disso, mesmo sem um tusto e um carro com vinte anos, nada me impede de ser filha de Deus. Além disso, sei observar. Há já muitos anos que a mediocridade da nossa Comunicação Social me exaspera. Quando a pessoa esbarra num perfeito caso-limite, uma autêntica hipérbole para tudo o que é feito com os pés, já que escreve crónicas, o melhor que tem a fazer é usá-las para partilhar a sua indignação com os outros, e explicá-la devidamente, porque o caso não é nada simples.
Vamos, então, recuar até ao passado mês de Agosto…
… Um rapazinho chamado Archie morreu a jogar um jogo viral no infame TikTok, que só se lembra de brincadeiras potencialmente nocivas para a vida das pessoas, e que nem se percebe como é que ainda não foi riscado do mapa. Ou então sou só eu que não percebo. Estou perfeitamente consciente de que sou uma autêntica relíquia medieval num mundo que não tem nada a ver comigo, nem eu quero que tenha.
Mais ainda alguém se lembra?
Olha que ideia tão gira, e sobretudo tão reveladora e tão educativa: malta, vamos fazer um concurso, e ganha quem aguentar sem respirar durante mais tempo. Este perigo público aparece no TikTok a seduzir os adolescentes com a mesma eficácia com que a serpente seduziu Eva, e todos os pais, mas mesmo todos, parecem achar normal que os seus filhos fiquem sozinhos a brincar com gadgets de toda a sorte que lhes dão acesso a loucuras desta dimensão obscena.
Resultado: um belo dia, em Inglaterra, os pais de Archie, que tinha doze anos, encontram-no em casa comatoso, já em plena morte cerebral. O que não passa de um eufemismo simpático para dizer simplesmente M-O-R-T-E, com todas as letras, porque se o cérebro de uma pessoa está morto, então a pessoa está morta sem volta a dar ao texto, continue ou não o coração a bater.
Depois foram semanas, e semanas, e semanas, de notícias piedosas, repetidas de meia em meia hora em todos os nossos canais informativos, sobre o sofrimento dos pais da criança. Usavam-se basicamente sempre as mesmas palavras, sempre com as mesmas imagens. Ou era um dos pais a chorar[1], ou eram os dois a pedir misericórdia aos médicos que tinham decidido por consenso geral desligar as máquinas, ou era alguém por eles a implorar ao Boris Jonhson que impedisse os médicos de prosseguirem a sua rota assassina, ou eram fotos recentes do menino, ainda vivinho da costa, a fazer poses para a câmara, ou a dar beijinhos à mãe.
E nunca, em canal informativo nenhum, em linguagem acessível e por maioria de razão a horas acessíveis, obrigatoriamente protagonizado por pessoas entendidas na matéria, se ouviu um único bom debate sobre a legitimidade de se proporem a crianças e adolescentes “jogos” destes em redes sociais de facílimo acesso. Ainda por cima, como todos os jornalistas papagueavam, o desafio de suster a respiração era “VIRAL”. Ou seja, toda a gente o conhecia. Não era propriamente um desafio de tal forma escondido e encriptado que seria preciso a ajuda do Ed Snowden para se conseguir encontrá-lo.
Então e o TikTok não é automaticamente fechado porque mata meninos de doze anos?
Ao menos não paga uma multa vingativa?
Ninguém vai preso?
Não é obrigado a barrar conteúdos destes, como, por exemplo, o Facebook acabou por barrar o excesso de palermices postadas sobre as vacinas durante os primeiros meses da Pandemia COVID, ou o Twitter acabou por barrar alguns dos piores insultos do Trump durante a primeira campanha?
E ninguém discute estas questões na nossa Comunicação Social, se bem que se arranjem sempre duas horinhas para discutir o futebol?
Mas o que vem a ser isto?
É da vaga de calor? Está tudo a dormir? E ninguém se preocupa com a inteligência dos espectadores portugueses? Ou será que já se decidiu em conluio secreto que a missão dos media é mesmo esta, é estupidificá-los brutalmente enquanto eles bebem umas jolas com os pés ainda cheios de areia, porque é isso mesmo que se faz às pessoas quando, finalmente, chega o facilitismo do tão aguardado mês de Agosto?
Epá.
Não, a sério.
Valha-me Deus.
Uma desinformação combinada como esta é positivamente criminosa.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sobretudo a Mãe, que era muito mais faladora, e sobretudo muitíssimo mais “camera-friendly” do que o esposo.
[2] Uma das características desta criança insuportável é andar sempre descalça. Pudera. Como nasceu prematura tem os dedinhos do pé terrivelmente deformados, e não há sapato que não a magoe. Mas algum adulto se chega à frente para a ouvir? Ora. É mais que qualquer adulto se chega à frente para lhe dar um par de estalos.
[3] Mais uma razão para as freiras a considerarem um diabinho.
[4] Tomara eu ser esperta como esse romano, mas só tenho seis anos e a pessoa não nasce com o estilo já todo aprendido. Pelo meio destas minhas dúvidas teológicas, já sei que vou ouvir das boas porque não estou mesmo a conseguir calçar os sapatinhos.
[5] O Zé tinha dezoito anos, e os nossos familiares mais conservadores diziam que ele era o “boy” das meninas. Para nós, ele era o Zé, mais nada. Chegava de manhã cedo do moceque da CuCa, supervisiona-nos o dia inteiro com muito humor e ainda mais carinho, e só voltava para casa depois de já estarmos na cama. Se fosse preciso ficar até mais tarde devido à agenda dos nossos Pais, contava-nos histórias de terror verdadeiramente terríveis, com tribos em que os homens eram iguais aos outros durante o dia mas à meia-noite se transformavam em leopardos e podia ir um, ainda homem, a passar diante da nossa casa naquele preciso momento. Eu devorava aquilo tudo, e depois, claro – ficava com tanto medo do escuro que já nem conseguia dormir.