Toga sem filtro

Um crime saído de onde menos se esperaria: uma Resolução do Conselho de Ministros

brown wooden stand with black background

por Rui Amores // Outubro 11, 2022


Categoria: Opinião

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Não, não se trata do Pedro Nuno e dos contratos manhosos do pai, nem se trata da Ana e dos contratos manhosos do marido, nem sequer se trata do Costa e da compra de apartamento em Lisboa, nem se trata das golas, nem do SIRESP, nem do Ministro da Saúde e da sua empresa de consultoria na área da saúde.

Nada disso. Trata-se de legislação, cozinhada durante meses, que teve contributos de muitos sectores, que teve contributos de cidadãos moradores das zonas onde esta nova legislação terá mais impacto e de outros que se interessam pelo futuro que nos estão a traçar.

E eis que, de repente, na véspera de um feriado, sai para a luz do dia aquilo que dificilmente não se pode deixar de classificar como um crime.

E o crime vem de dentro do local de que menos podíamos suspeitar. De dentro da Presidência do Conselho de Ministros. E o crime chama-se Programa da Orla Costeira (POOC) de Espichel-Odeceixe, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 87-A/2022 de 4 de Outubro de 2022, publicado no número 192 do Diário da República, 1.ª série.

Eis um pequeno excerto:

Em modelo territorial foi identificada uma Área Crítica de Contenção, na península de Tróia, onde importa adequar os regimes de salvaguarda definidos, com a prossecução de objetivos de manutenção do equilíbrio do sistema costeiro e preservação da linha de costa. Trata-se de um setor com dinâmica dunar de elevada complexidade e equilíbrio frágil, na qual o coberto vegetal desempenha um papel primordial. Pretende-se, assim, garantir a proteção dos valores biofísicos e funções ecológicas associadas, com vista à contenção de qualquer alteração de carga no sistema e à preservação do cordão dunar existente, e sua evolução natural, enquanto primeira linha de proteção face aos fenómenos de erosão e de galgamento, assumindo particular relevância em cenários de alterações climáticas e impactos associados às incertezas nas projeções do clima futuro.

Este pequenino trecho é bem indicativo do cinismo com que esta legislação foi criada e da total falta de vergonha de quem a aprovou.

Senão vejamos.

A área de que se fala é uma zona que em breve vai ser destruída às mãos do projecto denominado Conjunto Turístico “Na Praia”. À conta deste projecto, vamos assistir à destruição de uma das dunas mais bem preservadas da Europa, à destruição de vários endemismos lusitânicos, a maior pressão sobre o território, a maior pressão sobre os recursos hídricos.

Ou seja, vamos assistir a tudo aquilo que se pretende prevenir e pretende compatibilizar. Sim, porque as cabeças que conceberam esta legislação, como não têm a coragem de proibir determinados usos do território, tentam compatibilizar tudo, como se tudo fosse compatível com tudo. Não é verdade.

Mas ao mesmo tempo que faz isto, o legislador comete o crime de ver o território, única e exclusivamente, de uma perspectiva utilitarista. O território é suporte de actividades económicas, o território é suporte de recursos, potenciador de recreio, de turismo, de actividades agrícolas, etc.… etc.… e o território a tudo tem de se adaptar, os ecossistemas tudo têm de suportar, os recursos hídricos são infinitos.

greenhouse interior

E faz tudo isto sob o manto dos princípios da precaução e da prevenção, invocando o princípio da sustentabilidade e da, imagine-se, solidariedade intergeracional, da coesão e da equidade. É preciso não ter vergonha…

E, senhores e senhoras, a cereja no topo do bolo é a abertura mais despudorada, a mais criminosa das legalizações da ilegalidade a que se assistiu nos últimos tempos. Uma verdadeira amnistia ao crime que se pratica no parque natural do sudoeste alentejano.

Mais um trecho:

Considerando a importância socioeconómica das atividades agrícolas e florestais em algumas zonas da área de intervenção, o programa deverá contribuir para salvaguardar e potenciar o desenvolvimento sustentável destes setores, assumindo como principais desafios: assegurar a compatibilidade das atividades e usos agrícolas e florestais com outros usos; salvaguardar as áreas correspondentes a infraestruturas de apoio que servem de suporte a estas atividades (nomeadamente estufas); promover condições regulamentares favoráveis à concretização das potencialidades reconhecidas no domínio da agricultura, nomeadamente na região do sudoeste alentejano; promover a articulação e a defesa dos interesses dos diversos agentes, de modo a preservar a prática agrícola e florestal.

three children playing at the beach

A área em causa, já não é a península de Tróia, mas o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, mais concretamente, o perímetro de rega do Mira, que agora fica com aquilo que não tinha. A legalização da actividade predatória que ali é desenvolvida. O completo desrespeito pelo território, pela biodiversidade, pelos recursos naturais, pelas populações agora colocado em letra de forma, num diploma legal, aprovado por todos os ministros desta República.

Sempre a mesma visão utilitária, a protecção de sectores que se comportam como predadores, e uma protecção explícita do plástico que invade a costa vicentina e com este empurrão, ganhará certamente nova força. “Salvaguardar as áreas correspondentes a infraestruturas de apoio que servem de suporte a estas actividades (nomeadamente estufas)”. Completamente de cócoras…

“Se a injustiça é parte inevitável do atrito produzido pela máquina do Governo, que seja! (…) No entanto, se a natureza desse mecanismo exigir que nos tornemos agentes da injustiça, então não há que hesitar: a lei não deve ser cumprida. Há que agir contra a máquina e pará-la. Não podemos, de modo algum, transformar-nos nos agentes da injustiça que condenamos” – assim escreveu há 160 anos o filósofo e naturalista Henry David Thoreau na sua obra Desobediência civil.

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Estas palavras escritas nunca se mostraram tão actuais. É necessário resistir contra leis injustas como é o caso desta Resolução de Conselho de Ministros. Não nos podemos tornar, por omissão, agentes da injustiça.

Resistir é, desde logo, denunciar. Mas é, igualmente, fazer tudo para destruir este diploma iníquo. As associações ambientalistas, os movimentos de cidadãos, as populações devem mobilizar-se.

Rui Amores é advogado.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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