O relato desta guerra nas “nossas” televisões (ou noutras, como a impoluta BBC, por exemplo) parece um derby comentado na Sporting TV nos saudosos tempos do Bruno de Carvalho. Não sei se passaram por essa experiência de parcialidade doentia, mas, para quem gosta de tesourinhos, recomendo.
Ora, sobre um conflito entre dois (ou três) países estrangeiros, eu esperaria nas redacções menos paixão e mais factos. É mesmo mas mesmo difícil encontrar informação dos dois lados. Não ligo muito a propaganda russa ou ucraniana; porém, gostava honestamente de ter algumas notícias credíveis. Esperava, pelo menos que na União Europeia nos deixassem saber o que se vai passando nesta guerra, que a todos afecta. Sem perceber o que lá se passa é quase impossível perceber para onde caminhamos. Sim, porque nesta miséria vamos caminhando juntos.
Há dois ou três generais que, nas televisões portuguesas, nos vão dizendo que “no lado mau” não estão todos mortos ainda, enquanto a esmagadora maioria das notícias e dos comentadores passam as 24 horas do dia a explicar como a Rússia está encostada às cordas.
Neste particular, estou a ficar um fã assumido de Helena Ferro Gouveia, porque me faz sonhar, e alegra a minha vida com pacotes de felicidade de 10 horas. Normalmente, este é o tempo que demoramos a perceber que a Helena não sabe nada do que está para ali a dizer, e que a realidade lhe acaba a mostrar que aquele seu curso de liderança na Academia Militar não faz, enfim, nem fez, pois bem, milagres.
Antes do ataque à ponte de Kerch, dizia a comentadora, repetindo uma ideia antiga, que os russos estavam com tanta falta de equipamento que andavam a desempacotar caixotes da II Guerra Mundial. No dia seguinte, o exército russo incendiou 17 cidades ucranianas com cerca de 180 misseis, alguns para entreter as defesas aéreas, e outros, de alta precisão, para alvos específicos.
Se era este tipo de material que o Putin tinha nos caixotes que voltaram de Berlim em 1945, já compreendo como é que se safaram com o Hitler. Estavam 70 anos à frente do seu tempo tecnológico.
Seguiu-se o Rogeiro, com uma teoria que o ataque à ponte com o camião armadilhado poderia ser um trabalho interno russo que justificasse o ataque do dia seguinte. É um raciocínio legítimo e até caricato. A avaliar pela ironia e alegria de Zelensky, que fez piadas sobre o céu nublado da Crimeia, posso então acrescentar, à Teoria Rogeiroana, que não só os russos rebentaram a própria ponte e mataram cidadãos seus, como ainda disseram ao Zelensky que tinha sido obra dos serviços secretos ucranianos, para que ele não perdesse o orgulho nos seus.
Virá alguém agora dizer que é uma técnica clássica de contra-informacão da Guerra Fria, muito típica do KGB. E quem é que estava no KGB na Guerra Fria? Pois… o Vladimir. E assim forma-se um enredo à James Bond em menos de nada – é só querer muito.
Mas melhor do que nos dizerem que aos russos já só restam pedras e catapultas, vendo-os a disparar 180 mísseis no dia seguinte do Donbass a Lviv, é a forma como se festeja a morte de uns – os que se afogaram na explosão da ponte – e se condena a morte de outros – resultado dos mísseis de resposta.
No Leste europeu, as questões de moral e os valores estão bem definidos. Russos morrem aos magotes, e porque querem; ucranianos morrem, poucos, e só se tiverem azar. Festejamos as primeiras, lamentamos as segundas.
O que se diria, no Ocidente civilizado, se famílias desfilassem para tirar fotografias em frente a um quadro comemorativo com a ponte a arder?
Cheguei a ouvir que o ataque à ponte tinha sido “espectacular” e a resposta “bárbara”. No fim, e como sempre, o que vejo há alguns meses são diferentes formas de escalada no conflito e uma vontade ardente dos Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia de continuar a armar um lado da guerra, como disseram os seus três líderes, “pelo tempo que for necessário”. Na verdade, é uma metáfora para dizer “enquanto os povos europeus conseguirem pagar”.
Discute-se agora também a proporcionalidade dos ataques. É o mesmo tipo de argumento que usam quando os palestinianos respondem com pedras a carros blindados. Um dia disse-me um israelita, sem se rir: “que culpa temos nós de ter investido no melhor sistema de defesa anti-aérea do mundo e de não sermos afectados pelos rockets de Gaza? Eles que investissem também!!”. E continuou com grande eloquência, dizendo: “se eles só têm fisgas e pedras, que não ataquem alguém com um arsenal maior!”
Nesse caso em concreto, é bom lembrar, ninguém quer saber quem invade quem. Ninguém paga para o invadido se defender. E não, não é whataboutismo… é sem tirar nem pôr a mesma situação. Com um início semelhante, um invasor e um invadido, e um fim ligeiramente diferente. O invasor é que recebe o apoio da comunidade internacional e o invadido vai viver para uma gaiola, sem piar muito.
Já no Donbass e na Crimeia essa teoria não funciona. Quem tem o maior arsenal não o deve utilizar sob pena de entrar no “clube das bombas pela guerra”, uma vez que já todos sabemos quem tem a patente das “bombas pela paz”.
Mas o que mais me impressiona é o espanto e a indignação que por cá se faz com a resposta russa. Andam há meses a dizer que a extrema-direita e a oligarquia do Putin dominam o poder na Rússia – é um facto. Que o homem não é de confiança – é outro facto. E que tem, para além de armamento nuclear e um exército enorme, aspirações imperialistas – também parece real. Mas, mesmo assim… acham boa ideia “cutucar onça com vara curta”, como diriam os nossos irmãos brasileiros.
Não percebo. Todos parecem, de facto, achar que os russos estão fracos e sem botas para os soldados. E não sei bem como…
Entretanto, para ajudar na “festa”, com a escalada da violência, e mísseis apontados agora a outras cidades europeias e americanas, entra o lunático do Lukashenko em cena. Alguns dos mísseis deste último ataque partiram de território bielorusso, oficializando de certa forma a aliança que já era mais do que assumida.
Numa comunicação feita para que Zelensky e a NATO percebessem os passos seguintes, Lukashenko afirmou que o ataque de resposta à ponte pareceria uma brincadeira, comparado com o que ele faria caso os ucranianos tocassem num metro que fosse da Bielorrússia; e para o seu povo disse que a Ucrânia e a NATO preparavam uma invasão à Bielorrússia.
Não é difícil perceber, pelo tamanho da alucinação, que Lukashenko está a ler um discurso preparado por Putin, e que, a partir de agora, o seu envolvimento no conflito será real. Portanto, a cada semana que nos dizem que os russos estão desmoralizados e sem armas, eles sobem um nível e rebentam mais qualquer coisa.
Enquanto isso, começo a achar que as análises da Helena Ferro Gouveia já passam em horário nobre, e com legendas, em Kiev. E o Zelensky não deve perder uma.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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