A ofensiva ucraniana em Kherson não vem, confesso-vos, na melhor altura. Aproxima-se o primeiro teste da época para o Benfica e precisávamos de, no mínimo, três dias para discutir o penalti do Taremi e a expulsão do Otamendi. Já todos sabemos o que por ali acontece, mas fingimos sempre que é a primeira vez. Um pouco como os incêndios no Verão ou as cheias no Inverno que, enfim, apanham todos, ano após ano, de surpresa.
Na verdade, os nossos dramas com a política internacional podem sempre esperar quando a bola rola, uma figura pública faz publicidade à Prozis ou os Coldplay anunciam um quinto concerto. Também aí somos únicos…
Alguns países ainda avisam os seus cidadãos para abandonarem a Ucrânia (entre eles a China), e eu pergunto-me o que saberão eles que a nossa CNN ainda não nos contou?
Entretanto, Putin declarou lei marcial nos territórios anexados e já classifica a Ucrânia como invasor. O Mundo ao contrário, neste caso.
Dizem os especialistas que quase 60 mil homens estão às portas de Kherson e a evacuação de civis, por parte das tropas russas, significa que a cidade deve estar por horas.
Em determinados momentos deste conflito, achei mesmo que a diplomacia acabaria por resolver a coisa. Neste momento, a escalada é de tal forma grave que não consigo ver um fim para a guerra.
O apoio à Ucrânia à custa do empobrecimento está para durar e russos a largarem territórios é um cenário que se vê de século a século. Portanto, estamos naquele momento de impasse no diálogo em que a única garantia é que continuarão a morrer jovens russos e ucranianos, com ou sem armas nas mãos.
Falava com um amigo, já reformado, que me dizia com toda a honestidade que estava pouco interessado no destino do Donbass. A frase dele foi, literalmente: “nem sei bem onde fica aquela merda”, e acrescentou: “mas o Putin ainda é pior que o Zelensky. Os ucranianos podem respeitar pouco eleições, mas o Putin até as leis do país muda para se perpetuar no poder. É um ditador! Espero que acabe esta aventura a fazer tijolo!”
Quando lhe perguntei se a guerra devia parar por troca com a diplomacia, disse-me que não. Não podemos discutir com russos que só percebem o som das balas. De modo que, então, pois bem, era de continuar, até dar cabo deles.
No fim, já meio a rir, lá disse: “não podemos deixar aqueles comunistas virem por aí fora! Além do mais, não tenho créditos bancários, portanto, por mim isto pode durar o tempo que for preciso!”
Depois de lhe explicar que o Putin não é propriamente comunista, mas sim do outro lado da barricada, fiquei a pensar na honestidade do ancião. A reforma está garantida, detesta o Putin “comunista” e a casa está paga. Os filhos estão criados. Com algum jeito isto até traz alguma excitação à vida e aos debates no café com os amigos.
Depois pensei no que o meu filho me disse, após me ouvir ao telefone com o banco a tentar evitar uma subida para mais do dobro na taxa de juro do nosso crédito à habitação. “Não te preocupes pai, se tivermos de vender a casa não há problema. Eu compreendo.”
De facto, ele compreende. Tem uma curiosidade pelo mundo que o rodeia, e faz-me perguntas sobre tudo, desde que me lembro. É aluno de “A” em temas de política, e discute, quase diariamente comigo, as possíveis soluções para a situação da Ucrânia. Não concordamos em tudo o que me agrada, e ele já partilha opiniões que me fazem pensar.
Mas aquilo que me espantou foi ver uma criança disposta a sair do bairro onde viveu toda a vida, onde tem os amigos e a escola, ao perceber a minha angústia com a onda que se abaterá sobre nós. Ele, tal como eu, entende que o fim da guerra virá mais tarde do que o tempo que nos resta do crédito fixo acordado há mais de quatro anos. Nada nos trará imunidade perante a guerra por procuração que se trava na Ucrânia.
Pergunto-me: porque terá a vida do meu filho de ser alterada por uma guerra que nenhum de nós escolheu, concorda ou apoia? Ou sequer onde nenhum dos países em que vivemos está envolvido? Ou estarão? Já podemos dizer que estamos todos envolvidos nesta guerra?
Prometi-lhe que faria tudo para que não tivéssemos de vender a nossa casa, mas sinceramente não sei bem como. Tudo escapou da minha mão. A este ritmo de escalada no conflito, dentro de alguns meses teremos sorte se conseguirmos manter os empregos e as fontes de rendimento.
Voltei a pensar no ancião que clamava por mais bombas e gente musculada que se fosse desancando para entretenimento. Não está só, este meu amigo.
Quem nada tem a perder, uma família para sustentar ou uma casa para pagar, pode pedir tudo e entrar neste moralismo da solidariedade selectiva que nunca dispensámos a qualquer outro povo invadido.
Quem não corre riscos, nem sequer o de ter de ir parar ao campo de batalha, pode no conforto do lar exigir as famosas bombas pela paz. Mais, mais e mais…
Homens na reforma, mulheres, pessoal sem casa própria ou com vencimento dependente do Estado, estão entre aqueles que vou lendo a exigirem mais empobrecimento, mais armas, mais taxas de juro. Tudo, mas mesmo tudo, pelo Donbass.
Com a nossa inacreditável passividade, a guerra continuará e alguém tratará de ir pagando as facturas.
Um puto de 13 anos percebeu que a nossa vinha a caminho. Nem tudo é mau, afinal. Ainda vamos a tempo de perceber que esta geração será, provavelmente, bem mais esperta do que a nossa.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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