No dia em que te conheci
Rasguei todos os meus mapas
(passagem de um antigo poema árabe)
Aqui em Estremoz, morreu uma senhora de 93 anos que esteve óptima de corpo e de cabeça até há cerca de uns dois meses.
Tantos anos, tantos anos.
Provavelmente, viveu a vida inteira à espera do dia em que chegava de muito longe um desconhecido que se detinha à sua frente, a olhava até ao fundo dos olhos, e lhe punha a mão no ombro. E ela saberia logo quem ele era, embora, aqui em Estremoz, nunca o tivesse conhecido. Também nunca teria sonhado com ele. Ou, se tivesse sonhado, de manhã já se teria esquecido. Talvez o cheiro dele lhe fosse familiar. Talvez fosse o toque nítido da pele da palma da mão dele contra a pele do ombro dela. Talvez fosse a cor dos cabelos, ou então talvez fosse a cor da roupa. Ela ficava parada, confiante, a retribuir-lhe o olhar como num sorriso. E era então que ele lhe dizia exactamente o que dizem aqueles dois versos de um poema meio perdido, fragmentado pela erosão do tempo e pela evolução da língua. Era um código oculto, e ela reconhecia-o logo embora não o conhecesse antes. A partir daí, faria finalmente sentido enfrentar todos os desafios, superar todos os medos, levantar todas as amarras, e recomeçar a vida do zero, transformada numa viagem sem fim através do coração de tudo o que há de belo na vida, e que as pessoas sem código, aquelas que andam sempre de olhos postos no chão, nunca conseguem ver.
Ora acontece que esse desconhecido que ela conhecia tão bem, portador dos dois versos antigos com qualquer coisa como poderes mágicos, e que ela esperara ouvir ano após ano após ano, vinha de tão longe que precisava de caminhar sem fim até chegar a Estremoz. E, como em qualquer outra época das civilizações humanas, estava sempre a perder tempo com desvios à sua rota mais rápida, para não morrer de cada vez que atravessasse o território de qualquer uma das guerras que há agora. Sempre foi assim, porque houve sempre muitas guerras. No fundo dos seus segredos, ela nunca deixou de esperar por ele durante os seus 93 anos de vida. E ele estava a caminho, e ela sabia que ele estava. Mas a distância era tão grande que se interpôs entre a vida e o sonho. Ela conseguiu esperar por ele até aos 93 anos. Mas, mesmo assim, ele não conseguiu chegar a tempo.
E pronto. Em muito poucas palavras, e mesmo que elas ainda nunca tenham dado por isso, esta é, mais coisa menos coisa, a verdadeira história da vida de todas as mulheres do planeta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora