Por estes lados, onde me encontro, diz-se que, se a Alemanha cair, caímos todos. Isto é, se o motor da Europa parar, seguir-se-á o efeito dominó que nos deixará a todos numa situação de instabilidade. Ou mesmo esparramados no chão.
Nesse sentido, vejo com algum agrado o esforço que a Alemanha faz para manter a sua indústria a funcionar, injectando vários milhões em ajudas para o pagamento das energias.
França e outros membros da União Europeia ficaram particularmente furiosos com esta atitude individualista do governo alemão, furando directivas europeias e, de certa forma, financiando as vantagens competitivas das suas empresas.
Bem sei que não estamos habituados a colocar o nosso futuro em mãos alemãs, mas dificilmente alguém, que viva do seu trabalho, poderá criticar as opções do governo germânico.
De facto, uma coisa é decidir em Bruxelas um pacote de sanções à Rússia; outra, bem diferente, é aguentar a pressão interna quando os custos de produção disparam ou a energia fornecida não chega para os gastos. Os sindicatos na Alemanha não são para brincadeiras e a sua influência nas políticas do trabalho é bem real.
Portanto, o governo alemão decidiu o seu rumo e ignorou os parceiros europeus. E fez bem. Era o que eu diria se lá vivesse.
Parte da hipocrisia dos actuais dirigentes europeus passa muito por esta irritação, especialmente dos franceses, com as opções alemãs. Contudo, é bom que compreendamos uma coisa: as sanções não afectaram todos os países da mesma forma. A Alemanha tinha uma enorme dependência do gás russo. Outros países não.
É um pouco como as sanções que agora se impõem ao Irão por causa dos drones fornecidos à Rússia, depois da invasão, em Fevereiro, ter sido executada com equipamento comprado a diversos países europeus.
Ou seja, nós (europeus) fornecemos parte do armamento utilizado contra os ucranianos. E mesmo durante o período de guerra, financiámos os russos, através da compra de energia. Mas desatamos a distribuir sanções por quem queira fazer semelhante negócio.
A hipocrisia de quem nos governa chega a ser deprimente. Até na moralidade das negociatas queremos mandar.
Esta divisão europeia, cedo ou tarde, fará com que o apoio à guerra deixe de ser “as long as it takes”, como a nossa Ursula gosta de repetir.
A Alemanha é a maior Economia europeia e começa a trilhar o seu caminho. Há mais três ou quatro países com governos de extrema-direita que simpatizam com o regime de Putin. A Europa está dividida e, por mais discursos emproados em Bruxelas que von der Leyen faça, esta é a realidade.
Com a ajuda que Lagarde deu ontem – nova subida da taxa de juro –, deu-se mais um passo para o desespero das populações e um afastamento cada vez maior da solidariedade demonstrada quando a guerra só chegava pela televisão.
Entretanto, passámos a deixar o salário no supermercado, na conta da luz, nos combustíveis e na prestação da casa. Escrevi, há umas semanas, que a preocupação com a guerra dos outros deixa de existir, ou esbate-se na espuma dos dias, quando não sabemos o que meter na mesa para os nossos filhos. Ou sequer sabermos se ainda teremos mesa no dia seguinte.
Começam a aparecer os primeiros protestos, em diversos países europeus, contra a pobreza a que parecemos estar destinados.
Ninguém se quer sentar. Ninguém quer falar. Entre quem manda, a guerra parece não trazer dissabores. Putin tem apoio em partes da Europa, em África, no Médio Oriente, na América do Sul e na Ásia. China e Índia não se afastam – e depois do último congresso do partido comunista chinês, houve mesmo um apoio formal à Rússia.
Mesmo assim, a porta-voz da Casa Branca disse, na última conferência de imprensa, que os russos estão cada vez mais isolados. É uma visão do mundo muito própria consonante com quem chama “world series” à final de um campeonato de basebol entre equipas norte-americanas. É um mapa-mundo muito especial, que começa no Maine e termina na Califórnia.
O problema é que não é essa a realidade.
Putin recolhe apoios, forma novas parcerias, garante as ajudas para o “as long as it takes”, versão russa. Tal como Zelensky, que diariamente pede dinheiro à União Europeia e armamento aos americanos. De um lado e de outro há apenas o desejo de continuar e deixar que o Inverno faça o seu trabalho.
Entretanto, os ucranianos foram mandados para o século XIX e combatem o frio com lenha. Quase 20% da população quer negociações de paz. O recrutamento de mercenários e combatentes estrangeiros tornou-se um negócio próspero. O Kremlim foi bater à porta do regime talibã para pedir chefias militares. O ex-grupo terrorista, que passou a governo amigo quando Biden lhes devolveu o poder, está a dias de voltar a ser um inimigo. A insustentável leveza da hipocrisia nos jogos de poder e do cruzamento de interesses.
E como a coisa não está complicada que chegue, Joe Biden achou boa ideia afirmar que queria manter a vantagem militar sobre os chineses. Numa altura em que Xi Jinping deu uma demonstração de poder interno, mudando a constituição para se perpetuar no poder e tornar o seu pensamento doutrina inquestionável, Biden quer levar o Donbass um pouco mais longe e repetir a dose em Taiwan.
A China – que nunca mudou de regime, note-se – foi um parceiro óptimo nestas últimas duas décadas, produzindo tudo aquilo que a Europa e os EUA precisavam, com mão-de-obra barata. Ninguém quis saber de direitos humanos, de Taiwan ou do Tibete. Ninguém quis saber do regime. Ninguém quis saber da estabilidade, liberdade ou justiça. Quisemos foi produzir os nossos iPhones, aviões, carros e electrodomésticos a baixo custo. Quisemos manter o nosso estilo de vida à custa de trabalho escravo.
E agora, quando esse regime autoritário continua a ser o que sempre foi, a Europa faz um mea culpa, dizendo que não é um parceiro de confiança. Agora, com o apoio demonstrado a Putin. Agora, com as empresas chinesas espalhadas pelos cinco continentes e investimentos que garantem emprego um pouco por todo o Mundo. Agora, que têm os EUA pelos fundilhos com a dívida externa. Agora, que controlam empresas com monopólios em países europeus e espalharam as suas tecnológicas por toda a Europa. Agora, querem… o quê?
Este estado de conflito à escala mundial pode ajudar os norte-americanos, que não sofrem com os cortes energéticos e mantêm a máquina de guerra a funcionar, mas pouco ou nada trará de bom ao Velho Continente.
Nada temos a ganhar, nós europeus, com a guerra na Ucrânia e muito menos com um alargamento do conflito à China. A cidade onde eu vivo, no mais recente país da família NATO, ficaria com milhares de desempregados se o investimento chinês desaparecesse. Eu seria um dos que iria para a fila do fundo de desemprego. Portanto, quando vejo as elites europeias a brincarem com a pobreza dos seus habitantes e os americanos a meterem em risco os nossos empregos, lamento, mas a minha solidariedade termina. Não é esta a minha luta.
E por isso compreendo a estratégia do Governo alemão e o seu distanciamento ao suposto alinhamento de Bruxelas. Se os ucranianos fornecem a carne neste jogo de marionetas, o resto da Europa parece querer oferecer a nossa pobreza como contributo para a guerra.
Não se vê uma estratégia europeia que não seja a de cumprir ordens vindas do outro lado do Atlântico, e chega a ser embaraçoso ver este desempenho dos governantes europeus num momento de viragem histórico. Bem sei que não é Churchill quem quer, mas merecíamos algo melhor.
Por tudo isto, os alemães fazem o que devem fazer na defesa dos seus trabalhadores. E arrisco dizer que, por uma vez, estão do lado certo da História.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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