a deriva dos continentes

As hienas

por Clara Pinto Correia // Outubro 28, 2022


Categoria: Opinião

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O que é bom na nossa absoluta ignorância do Além é que nada nos impede de acreditarmos que, durante esta última semana, num lugar que nenhum de nós pode sequer imaginar, aquela senhora de 93 anos, que morreu aqui em Estremoz, e o homem que vinha de muito longe, ao encontro dela, conseguiram, por fim, encontrar-se. E agora, para serem felizes, têm toda a eternidade pela frente. Passamos a vida a fazer dela um bicho de sete cabeças, mas, honestamente, a eternidade não tem nada de especial. Tem apenas a paz luminosa de nunca precisarmos de estar com pressa…

Agora, uma coisa é respeitarmos a nossa ignorância do Outro Mundo, e outra, muito diferente, é sermos mantidos deliberadamente na ignorância Deste Mundo. Essa é uma ignorância que toda a gente sabe que se mantém de geração em geração perpetrada pela mão criminosa do mesmo velho bando de hienas que se autoperpetua à custa de milhões de carcaças, porque é a incapacidade de pensar das enormes maiorias que sustenta no poder as minúsculas minorias.

E, para um bom exemplo de como a Comunicação Social nos vende com grande afinco tudo o que seja jogo sujo de Não Pensar, vamos lá respirar fundo e voltar à morte do pequeno Archie.

Ora então – coitado do puto, que não há nada de mau de que não tenha sido exemplo – a título de segunda descasca…


… Ora então muito bem.

Concluída que está a primeira série de impropérios relativa ao desperdício de informação servido aos portugueses numa bandeja aquando da morte do pequeno Archie, permitido que vos foi respirar fundo e fazer rir os outros com o urso polar de patas para o ar do Mário Castrim, recordemos que a minha primeira descasca teve a ver com a total ausência de debate sobre permitir ou não que existam redes assassinas como o TikTok – e que os pais achem normal deixarem os filhos sozinhos em casa com acesso total àquela arma mortífera.

Falta passarmos à segunda descasca, tão ou mais grave ainda do que a primeira: ninguém, em canal nenhum, a hora nenhuma, se deu ao trabalho de convidar um bom neurologista, ou qualquer outro bom especialista do cérebro – temos vários, todos muitíssimo bons, e todos de linguagem muito clara quando estão a falar para audiências desprevenidas – que esclarecesse as hostes perplexas sobre se quem tem o coração a bater, mas tem o cérebro morto, está morto ou não está morto.

Se ao menos toda a gente tivesse ficado esclarecida a este respeito, graças ao jovem Archie evitavam-se, a partir deste Verão, imensas angústias sobre desligar ou não “a máquina”.

Em poucas palavras, é possível voltar a fazer funcionar um coração morto. Mesmo assim, para que ele continue a funcionar “sozinho”, assim que recomeçar a bater há que ligá-lo à tal “máquina”.

Mas um cérebro morto, em contrapartida, a partir do momento em que morre, está irremediavelmente morto – e, como é óbvio, o seu portador morre com ele.

Não era importante ter explicado isto aos portugueses?

Grandessíssimos cães da pradaria, que deviam estar todos de férias[1].

Pelo meio de toda a saga melosa do jovem Archie, com os pais sempre a implorarem que não lhe desligassem a máquina porque o seu coraçãozinho continuava a bater, a nossa Comunicação Social ainda teve a baixa moral de fazer aos portugueses mais um desfavor vergonhoso: a lata de equiparar um coração que bate a uma pessoa que está viva. O que não podia ser um erro mais grosseiro[2]. Palavra de honra, é que conversas destas… eu sei que não são…, mas é que PARECEM mesmo, mesmo, e mesmo-mesmo, compostas de propósito para estupidificar ainda mais os espectadores incautos. Que, obviamente, são quase todos. E, à mulher de César, não lhe basta ser honesta.

É verdade que o coração humano – um dos primeiros órgãos que se formam no embrião, e que, a partir daí, asseguram a possibilidade do seu restante desenvolvimento – nos alimenta, nos oxigena, e nos limpa. Mas o seu mecanismo de funcionamento, que começou muito cedo, estendeu a sua teia de capilares através de todo o embrião muito antes da formação da vasta maioria dos outros órgãos, já está todo formado à nascença, e tem um mecanismo básico de razoável simplicidade – a mesma simplicidade que lhe permitiu manter vivo o embrião, e depois o feto, desde a mais tenra idade do desenvolvimento. É por isso que as manobras de reanimação de um coração que parou de bater são tão simples. É por isso que foi possível oferecer ao nosso grande herói Salvador[3] um transplante de coração, assim como é possível fazer operações de bypass, ou instalar pacemakers; ou, como no caso do Archie, ligar o coração a uma máquina, com a certeza absoluta que essa máquina asseguraria a continuação do seu batimento pelos séculos dos séculos, se fosse caso disso.

…Pois dar de beber à dor é o melhor…
Com a maior das modéstias, Clarinha subscreve Amália e a Mariquinhas.
Note-se que traja, para este momento especial do seu arquetípico
“e não tenho medo de ninguém”
o magnífico casaco até aos pés de vison branco, comprado com o dinheiro ganho a escrever quatro versões diferentes do guião de um filme, e magicamente desaparecido aquando de todo o caos que presidiu à sua mudança do Penedo para Xabregas.
Ninguém, mesmo aqueles de entre vós que possuam um cérebro extremamente criativo, poderá alguma vez imaginar a quantidade de coisas preciosas que desapareceram da minha vida para todo o sempre quando os meus amigos[4] vieram ajudar-me a pôr cremes, bolsas, jóias, calçado, e roupa, dentro dos caixotes mais elegantes e em melhor estado, trazidos diretamente de um gabinete da tropa por um amigo que tinha um irmão militar.
O contentor onde estavam todas as botas, por exemplo, marchou logo.
Os casacos compridos e os blusões de camurça tão macia que parecia um pecado, todos eles pendurados dentro de plásticos no armário do meu quarto que era o único que eu trancava… estranho, estranho, é o poder do pecado capital da gula. Desde que dissessem Ralf Lauren, Yves Saint Lauren, Calvin Klein, Versace, Karl Lagerfeld, Donna Karan New York, e até um blazerzinho que eu adorava e dizia Chanel – ainda não era meio-dia e a porta do armário já estava escancarada. Lá dentro, só restavam algumas descobertas felizes das feiras da região.
Estas pilhagens em massa são organizadas pelo nosso cérebro. Não é propriamente o córtex reptiliano que entende o interesse de um objecto com uma etiqueta a dizer Karl Lagerfeld. Se o córtex reptiliano soubesse ler, claro…

… … …

Esta mudança, o meu verdadeiro padrão da pobreza, foi desencadeada pela insolvência, logo seguida, ao fim de trinta anos de paz e amenidade, pela súbita ordem de despejo que a D. Laura decidiu fazer-me chegar por uma advogada “porque ela quer ver se pode subir a renda para o dobro e ganhar muito dinheiro com a casa, compreende, porque, de repente, a vida se tornou muito difícil para todos nós”… e, para completar o quadro, pela expulsão dos meus filhotes da América[5], o que fez de mim, por muitos e bons anos, e literalmente, A MÃE DOS BANDIDOS[6].

Apesar de todos os esforços e boas intenções do Dick, é evidente que, a bem dizer, curtiram os dois ferozmente a bandidagem lá do sítio, fizeram todos os piores amigos que dois adolescentes estrangeiros conseguem fazer em menos de um mês, engataram miúda atrás de miúda, e chegaram (bem, foi só o Ricky, a quem nós chamávamos desde pequenino, porque estava mesmo na cara, o TRICKY RICKY), a dar-se ao desplante de ir mandar quecas para a cama do Pai, enquanto três “amigos pretos[7]” ficavam a controlar entradas e saídas, enquanto batiam “nuns tambores[8]” a acompanhar “um daqueles raps do Eminem a dizer aquelas porcarias todas sobre a mãe[9]”.

Passei-me,” continuava ele no Skype, embora já me tivesse contado aquela história várias vezes. “Passei-me. Subi os degraus a correr, entrei no quarto, vi o Ricky com a miúda na minha cama[10], gritei “RICKY!!! WHAT THE FUCK DO YOU THINK YOU’RE DOING?????”, Clarinha, ouve, eu disse mesmo WHAT THE FUCK! E atirei um para cada lado e chamei a polícia. E foram todos presos por B&E, e eu fui com eles para apresentar a minha queixa. E nisto perdi UM DIA INTEIRO. É horrível. Tenho visto muito bem o que é que acontece aos Pais de Filhos Criminosos que são apanhados nesta teia de aranha de Polícia, Prisão, Psicólogo, Papeladas, reuniões de Pais Anónimos…

Era o maior terror do Dick, ainda eu vivia no Penedo, ainda os nossos filhos estavam de novo na Prisão de Menores, cada vez mais ricos de vender toda a coca limpíssima, que por vezes alguns visitantes insuspeitos lhes passavam nas visitas, aos guardas que depois a vendiam aos presos, e às vezes até ao enfermeiro de serviço, um rapaz sólido como um rochedo mas sempre cansado, porque fazia turnos consecutivos de 18 horas para conseguir amealhar o suficiente para assegurar à noiva o casamento de conto de fadas que ou era mesmo de conto de fadas ou não havia casamento, a certa altura constou que até a namorada se tinha metido no consumo, porque fazia directa atrás de directa para ultimar absolutamente tudo no enxoval perfeito do casal perfeito que eles tinham absolutamente que ser:

Clarinha, please, tu estás bem a ver a gravidade disto? PEOPLE LOSE THEIR JOBS!!! As pessoas têm que ir a tantas reuniões, a tantas prisões, a tantas identificações, a tentar explicar tantas más intenções, que acabam por ser chamadas à chefia e postas na rua. Entendes? Já vi Pais de Bandidos, como eu, perder os empregos por terem que andar o tempo todo atrás dos filhos!

Ter que ouvir aquilo era extremamente ofensivo para mim, abandonada à triste vida de Mãe Solteira desde o 11 de Setembro.

Claro que o Dick nunca perdeu o emprego, pelo amor de Deus. Tinha tenure no Amherst College, um pilar chiquérrimo do ensino superior, onde, entre outras Grandes Figuras, estudou o Príncipe Carlos do Mónaco, visitado pelas duas irmãs na festa que assinala o final de cada ano lectivo, para grande felicidade de todos os rapazes e todos os velhotes presentes. O que a questão do tenure queria dizer era que tinha um contrato para a vida até à idade da reforma, numa posição semelhante à de um catedrático em Portugal. Numa instituição tão perfeitamente Ivy League como o College, tinha de certeza um óptimo ordenado e imensos benefícios colaterais. Francamente. Vir-me chorar no meu ombro que “people lose their Jobs”…

Há que ter um cérebro absolutamente vivo, e muito bem musculado, para lidar com tudo isto.

Há que manter o sentido de humor mas ser firme.

E, antes mesmo de os principezinhos endiabrados desembarcarem em Lisboa, havia que comprar tudo o que eu conseguisse comprar em segunda mão, e arranjar um transporte à altura das minhas posses que a bem dizer não existiam, para pôr a casa de Xabregas toda bonita e nos habituarmos a sermos felizes lá dentro.

É para momentos destes que precisamos de um cérebro sempre atento, e não propriamente de um coração. Ao coração só se pede que bata. Ao cérebro pede-se que urda estratégias para acolher dois jovens bandidos em casa, e que se vá acertando o rumo dessas estratégias para que tudo acabe por correr em paz, sossego, e muito riso

É por isto mesmo que o cérebro, ao contrário do coração, tem uma formação e um funcionamento que são tudo menos simples. Muito pelo contrário, são complicadíssimos. E controlam tudo. A porção do cérebro encaixada dentro da nossa caixa craniana rodeia, no chamado lobo frontal que só existe nos humanos[11], a sede da nossa inteligência. O restante conteúdo da caixa craniana prolonga-se por dentro das vértebras, do pescoço ao cóccix, chama-se sistema nervoso central, e assegura o processamento inteligente de todas as informações que recebemos, para que possamos responder-lhes da forma mais correcta possível.

A partir do momento em que morre toda esta estrutura finíssima, e dificílima de montar (basta pensar na sua subsequente associação a todos os nossos nervos), acabou-se. ACABOU-SE, GAITA. Estamos mortos, mesmo. Um cérebro morto já não volta a acordar, seja por que artes mágicas de que máquina inexistente for. E, quanto mais passarem os dias depois da morte, como no caso de Archie, mais o cérebro degenera.

Agora.

É impressão minha, ou teria sido extremamente importante explicar isto a toda a gente, na sequência daquela morte absurda e perante a nossa condenação a vermos a mãe do menino em lágrimas de meia em meia hora? E não era boa ideia, como eu comecei por dizer, que essas explicações fossem prestadas por óptimos especialistas que são também óptimos comunicadores, com muito mais conhecimento de causa na matéria do que eu? E se neste preciso momento caísse um raio em cima da cabeça de todos os directores de informação portugueses?

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Recorde-se, uma vez mais, que era Agosto. A Comunicação Social costuma entrar em parafuso em Agosto, porque é um mês em que nunca se passa nada. Em Agosto, nunca caem DC9s das Turk Ava Yollari. Em Agosto, ninguém tenta disparar contra o Papa. Então e esta história, com tantos ângulos para estudar – não teria sido um enorme bónus para compensar o restante famoso vazio do mês de Agosto? A sério. Eu pasmo.

[2] Estas pessoas são consensualmente denominadas como “vegetais”, e o termo é duro, mas está perfeitamente correcto. Um vegetal não é um animal. Um vegetal nunca mais fará tudo o que nós fazemos, todos os dias. Se há pessoas que às vezes, miraculosamente, acordam depois de vegetarem depois de dezenas de anos? Há, sim. Mas são milagres. Como tal, são extremamente raros. Significativamente, não chegam a ter expressão.

[3] O excelente músico e cantor Salvador Sobral não tem culpa nenhuma: era o que as revistas e jornais de baixo nível lhe chamavam nesse Verão.

[4] Depois nunca mais os vi.

[5] Apesar de todos os esforços do Dick, a verdade é que naqueles dois anos passaram mais tempo enfiados em casas de miúdas que viviam nos projects a fumar muitos charros e a ouvir muito rap e claro que não só; ou então estavam nas esquinas a distribuir E pelos clientes habituais e a ganhar pipas de massa porque à época o ecstasy ainda era uma invenção recente e até as avozinhas a cair da tripeça, que só se lembravam de violência doméstica, de gajos completamente bêbados ou completamente mocados que as fodiam em pé contra a parede a chamar-lhes todos os palavrões deste mundo, e quando chegavam à parte em que elas eram umas gandas putas que ofereciam aquela cona suja a toda a gente, vinham-se logo e toda a cena nem chegava a durar cinco minutos mas doía muito – alguém se surpreendeu quando, depois de uns belíssimos jogos de sedução do meu mais velho que se sentava todo bonito ao lado delas, a cheirar bem, e lhes falava das coisas boas que a vida tem sempre para nos oferecer, se quisermos procurar e arriscar, subitamente quiseram todas ser felizes e desataram todas a consumir com gosto, por vezes em festas só delas, em casa de uma ou de outra, com bolinhos e licores, e tudo? Claro que não. Às vezes convidavam o meu Mike para tirar a T-shirt (ainda não tinha a tal tatuagem, mas tinha uma musculação perfeita), e dançar para elas. O meu filho delirava com tanta atenção. E pronto, no resto do tempo, estavam na prisão de menores, onde se musculavam até não conseguirem encostar os braços ao corpo, e onde às tantas, o Ricky descobriu a Bíblia e ficou fascinado – fascinado com tanta crueldade, tanta violência, tantas guerras, tanta gente a matar tanta gente de formas tão horrorosas. Até metia medo. O seu figurino perfeito. Começou a falar com o padre da cadeia, que era um evangélico qualquer que tratou de aterrorizá-lo ainda mais. Quando chegou a Lisboa, o Ricky ainda vinha com a Bíblia da prisa. Impressionadíssimo. Passou os nossos últimos anos em família a fazer-me perguntas tremendas. Fiz questão de responder sempre em grande detalhe a todas.

[6] Todos os que acompanharam a verdadeira loucura da minha vida com os meus queridos leõezinhos que eu adoro, que se foram tornando cada vez mais eficientes na arte de me roubarem tudo o que me restava depois de eu já estar falida e desempregada, quase me imploravam que escrevesse um livro com este título onde descrevesse a minha experiência incrível de viver com dois gangsters do gang da Boavista, considerado (dizem-me os putos com muito orgulho) o mais perigoso de Lisboa. Talvez mais tarde escreva. Mas só se for em colaboração com eles e com o Pai. Na realidade, houve ali umas fases em que se esteve mesmo bué bem. A maternidade foi a experiência mais rica e mais avassaladora da minha vida.

[7] Não é meu: é o Dick que fala assim. Deveras. Mesmo sendo o americano mais porreiro que eu alguma vez conheci em vinte anos de quotidiano em terra alheia.

[8] É o Dick a falar.

[9] À época estes raps do Eminem eram tão conspícuos, e, francamente, tão bem construídos, que ATÉ O DICK sabia que o puto gostava de rap a dizer mal da mãe.

[10] Grande cabrão. Até senti um nó na garganta. Era a NOSSA cama e era EU que a tinha comprado num mercado de antiguidades mesmo no meio da floresta. Também era EU quem a tinha montado, com a ajuda de um Prof do meu Departamento que adorava bricolage. E MAIS: era EU, sim o MEU dinheiro, que tinha comprado todos aqueles lençóis, edredons, almofadas, colchas, mantinhas, tudo do bom e do melhor, tudo do mais bonito que existisse onde quer que fosse, para dar bons sonhos ao Rei Leão. Agora “A MINHA CAMA”. Filho da puta. Grandessíssimo filho da puta…

[11] E que foi descoberto por Egas Moniz no início do século XX, embora eu dê explicações e nunca tenha ouvido esta memória da boca de qualquer aluno, nem visto qualquer referência ao nosso Prémio Nobel nos estranhos “Livros de Texto” que agora os obrigam a usar, que eles não conseguem perceber, e que muito provavelmente eu também não conseguiria, se fosse da idade deles.

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