Durante a minha juventude, e sobretudo no período universitário, sempre me intrigou o ostracismo a que foi votada uma grande parte da obra de Fernando Pessoa. Ele escreveu sobre tudo. Escreveu praticamente em todos os estilos literários – prosa, poesia, contos –, sendo aí considerado, por muitos, o maior escritor em língua portuguesa.
No entanto, o Fernando Pessoa economista é, entre nós, praticamente desconhecido. E não devia.
Compreendo, em parte, esse banimento: o actual regime dedica-se há mais de 48 anos a extorquir o bolso dos portugueses, restringindo crescentemente a liberdade destes, em especial a liberdade económica.
Hoje, assistimos à tentativa de destruição do Estado-Nação, com a transferência de soberania para entidades supranacionais, e o objectivo básico é restringir liberdades essenciais, em particular a liberdade de empreender. Tal política, irá acelerar a concentração de poder num reduzido número de empresas globais.
Por essa razão, julgo que nunca foi tão importante, como agora, revisitar Fernando Pessoa, o Economista.
Que ensinamentos nos legou? Afinal, o que escreveu assim tão relevante em matéria económica?
Vejamos então.
Sobre as empresas na mão do Estado
O que pensava Fernando Pessoa sobre a administração estatal dos negócios?
“Considerada em si mesma, a administração de Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis para qualquer das três entidades com que essa administração implica. De todas as coisas organizadas, é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas… É pois evidente que quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando.”
Esta foi a desgraça que se abateu sobre a bancarroteira nacional: a TAP. A administração de uma empresa, através de comparsas e comissários políticos, abriu caminho a milhões e milhões de Euros dos contribuintes, com um único propósito: proporcionar sinecuras de luxo à clientela política do regime.
Em relação aos funcionários públicos, burocratas e comissários políticos metidos na administração de negócios – indivíduos que nunca arriscaram um cêntimo do seu bolso em qualquer aventura –, Fernando Pessoa reservava-lhes as seguintes palavras: “… a administração de Estado sofre ainda a viciação proveniente de ser exercida por e através do tipo de indivíduo que em geral forma o funcionário público. Salvo para as carreiras militares — em que há abertas especiais para a ambição e para a energia —, nenhum homem de verdadeira energia e ambição entra para o serviço fixo do Estado. Não entra porque não há ali caminho para a energia, e muito menos para a ambição.”
E quando vemos políticos, através de palavras grandiloquentes – “TAP é tão fundamental para o país como foram as caravelas”,“…é absolutamente estratégica” –, a manifestar a necessidade de nacionalizar empresas, escutemos Fernando Pessoa a respeito: “Seria ridículo e indesculpável que, depois destas considerações essenciais, gastássemos a paciência do leitor com o exame da mitologia de argumentos que se têm apresentado em defesa da “nacionalização”, ou administração de Estado. Nenhum desses argumentos, próprios em geral só para contos humorísticos ou discursos políticos, pode prevalecer contra as considerações orgânicas que apresentámos.”
As empresas têm como propósito servir o consumidor e obter lucro
Depois de uns recentes lancinantes apelos ao assalto de supermercados, em que roubar para comer passou, supostamente, a não ser crime – ou, pelo menos, houve apelos desse jaez –, o respeito por um dos pilares mais importantes do mundo ocidental, o respeito pela propriedade privada, parece estar a desaparecer.
Recentemente, até a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ameaçou mudar as leis para confiscar cidadãos russos. Hoje, os russos; amanhã, poderá ser você.
Fernando Pessoa tinha ideias claras sobre o trabalho de um empreendedor e dos seus objectivos, definindo marketing muito antes do que muitos autores norte-americanos, respeitando sempre os lucros privados e a propriedade privada.
Para demonstrar a importância do consumidor, utilizou o caso de uma empresa inglesa que exportava para a Índia, sem ter dado atenção ao tamanho dos ovos que aí se consumiam. Contava-nos assim:
“Sucedeu, porém, que, alguns anos antes da Guerra, as firmas inglesas exportadoras deste artigo notaram que a procura dele na Índia decrescera quase até zero. Estranharam o facto, buscaram saber a causa, e não tardou que descobrissem que estavam sendo batidas por casas exportadoras alemãs, que vendiam idêntico artigo ao mesmo preço.
Feita a averiguação ansiosa da causa deste mistério, não tardou que se descobrisse. Os ovos das galinhas indianas eram — e naturalmente ainda são — ligeiramente maiores que os das galinhas da Europa, ou, pelo menos, das da Grã-Bretanha. Os fabricantes ingleses exportavam as taças de tipo único que produziam para o consumo doméstico. Essas taças, evidentemente, serviam de um modo imperfeito aos ovos das galinhas da Índia. Os Alemães notaram isto, e fizeram taças ligeiramente maiores, próprias para receber esses ovos. Não tinham que alterar qualidade (podiam até baixá-la), nem que diminuir o preço; tinham certa a vitória por o que em linguagem científica se chama a adaptação ao meio. Tinham resolvido, na Índia e para si, o problema de comer o ovo de Colombo.”
O consumidor tem sempre razão. O capitalismo é servir um consumidor, e tendo lucro. Concluía assim Fernando Pessoa: “Um comerciante, qualquer que seja, não é mais que um servidor do público, ou de um público; e recebe uma paga, a que chama o seu ‘lucro’, pela prestação desse serviço. Ora toda a gente que serve deve, parece-nos, buscar agradar a quem serve.”
Muito antes dos gurus de gestão e marketing, contratados há mais de 25 anos pelo Estado português a peso de Ouro – seu nome, Michael Porter –, já Fernando Pessoa explicava que era necessário analisar e estudar vários dimensões, sem preconceitos nem antecipações, para abordar um mercado com sucesso:
“Para isso é preciso estudar a quem se serve – mas estudá-lo sem preconceitos nem antecipações; partindo, não do princípio de que os outros pensam como nós, ou devem pensar como nós —porque em geral não pensam como nós –, mas do princípio de que, se queremos servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como eles: o que temos que ver é como é que eles efectivamente pensam, e não como é que nos seria agradável ou conveniente que eles pensassem.”
“O estudo do público, isto é, dos mercados, é de três ordens — económico, psicológico e propriamente social. Isto é, para entrar num mercado, seja doméstico ou estranho, é preciso: 1) saber as condições de aceitação económica do artigo, e aquelas em que trabalha, e em que oferece, a concorrência; 2) conhecer a índole dos compradores, para, à parte questões de preço, saber qual a melhor forma de apresentar, de distribuir e de reclamar o artigo; 3) averiguar quais as circunstâncias especiais, se as houver, que, de ordem profunda e social ou política, ou superficial e de moda ou de momento, obrigam a determinadas correcções no resultado dos dois estudos anteriores.
A maneira de fabricar, de apresentar, de distribuir e de reclamar um artigo varia conforme a índole geral dos indivíduos que compõem o mercado onde se pretende vendê-lo. Num meio de gente educada as condições são diferentes, para todos estes casos, do que num meio de analfabetos. Um meio provinciano — educado ou não — tem uma psicologia distinta da de um meio de cidade.
Em resumo: o comerciante é um servidor do público, tem que estudar esse público, e as diferenças de público para público se o artigo que vende ou explora não é limitado a um mercado só. O comerciante não pode ter opiniões como comerciante nem deve fazer comercialmente qualquer coisa que leve a crer que as tem. Um comerciante português que faça um rótulo encarnado e verde, ou azul e branco, comete um erro comercial: quem segue a política das cores do rótulo não lhe compra o produto por isso, e quem segue a política oposta deixa muitas vezes de o comprar. Por um lado, não ganha, por outro perde.
Mais incisivamente ainda: o comerciante não tem personalidade, tem comércio; a sua personalidade deve estar subordinada, como comerciante, ao seu comércio; e o seu comércio está fatalmente subordinado ao seu mercado, isto é, ao público que o fará comércio e não brincadeira de crianças com escritório e escrita.”
A liberdade de empreender; a defesa da liberdade individual
Fernando Pessoa reduzia o Estado às suas funções de soberania – tribunais, defesa, segurança -, não devendo em caso algum interferir no mercado. Na verdade, o Estado apenas existia para o indivíduo, deixando muito claro os problemas que advinham do intervencionismo estatal.
Enaltecia igualmente o século XIX, um século de liberdade e do padrão-ouro, de enorme prosperidade para a humanidade:
“A legislação restritiva do comércio e do consumo, a regulamentação pelo Estado da vida puramente individual, era corrente na civilização monárquica da Idade Média, e no que dela permaneceu na subsequente. O século XIX considerou sempre seu título de glória o ter libertado, ou o ir libertando, progressivamente o indivíduo, social e economicamente, das peias do Estado. No fundo, a doutrina do século XIX — representada em seu relevo máximo nas teorias sociais de Spencer — é uma reversão à política da Grécia Antiga, expressa ainda para nós na Política de Aristóteles — que o Estado existe para o indivíduo, e não o indivíduo para o Estado, excepto quando um manifesto interesse colectivo, como na guerra, compele o indivíduo a abdicar da sua liberdade em proveito da defesa da sociedade, cuja existência, aliás, é a garantia do exercício dessa sua mesma liberdade.
Seguidamente, analisava os vários tipos de intervencionismo:
- “Há, (l) a legislação restritiva que pretende beneficiar a colectividade, o país: é a que proíbe a importação de determinados artigos, em geral os chamados “de luxo”, com o fito de evitar um desequilíbrio cambial;
- Há, (2) a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor colectivo: é a que proíbe a exportação de determinados artigos, em geral os chamados “de primeira necessidade”, para que não escasseiem no mercado;
- Há, (3) a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor individual: é a que proíbe ou cerceia a venda de determinados artigos — desde a cocaína às bebidas alcoólicas — por o seu uso, ou fácil abuso, ser nocivo ao indivíduo; e aquela legislação corrente que proíbe, por exemplo, o jogo de azar é exactamente da mesma natureza;
- Há, (4) a legislação restritiva que pretende beneficiar o operário e o empregado: é a que restringe as horas de trabalho, e as de abertura de estabelecimentos, e põe limites e condições ao exercício de determinados comércios e de determinadas indústrias;
- Há, (5) a legislação restritiva que pretende beneficiar o industrial: é a legislação pautal na sua generalidade proteccionista.”
Com a sua pena, Fernando Pessoa destruía de uma assentada toda a espécie de intervencionismo.
Fixemos, desde já, o primeiro ponto; tiremos, desde já, a primeira conclusão, que é inevitável. Todos estes tipos de legislação restritiva — beneficiem ou não a quem pretendem beneficiar —prejudicam aquela desgraçada entidade chamada o comerciante. A 1.ª espécie de legislação restritiva limita-lhe as importações; a 2.ª limita-lhe as exportações; a 3.ª limita-lhe as vendas; a 4.ª limita-lhe as condições de produção, se é também industrial, e as horas de venda, se é simples comerciante; a 5.ª restringe-lhe a liberdade de concorrer.
Arrasava igualmente a repressão e/ou a promoção de determinados comportamentos por parte do Estado. O Estado moralista, que enunciava o bem-comum era perigoso. O ataque aos fumadores, aos não vacinados, aos obesos, era inaceitável. O Estado não deve legislar nem se meter no comportamento dos indivíduos. Para o clarificar, usava o exemplo da lei seca nos Estados Unidos no século transacto:
“Chegámos ao ponto cómico desta travessia legislativa. Chegámos ao exame daquela legislação restritiva que visa a beneficiar o indivíduo, impedindo que ele faça mal à sua preciosa saúde moral e física. É este o caso de legislação restritiva que se acha tipicamente exemplificado no diploma que é o exemplo de toda a legislação restritiva, quer quanto à sua natureza quer quanto aos seus efeitos — a famosa Lei Seca dos Estados Unidos da América. Vejamos em que deu a operação dessa lei.
Não olhemos ao caso social; tratá-lo não está na índole desta Revista, nem, portanto, na deste artigo. Não consideremos o que há de deprimente e de ignóbil na circunstância de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há-de beber e o que não há-de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou um colete de forças, como a um doido. Nem consideremos que, indo por esse caminho, não há lugar certo onde logicamente se deva parar: e se o Estado nos indica o que havemos de beber, por que não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? Por que não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas estas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, por que razão se não disporá a sê-lo para todas?
Fernando Pessoa também dissecava as virtudes e defeitos dos tais burocratas que decretam comportamentos virtuosos. Quem não viu as duas baratas-tontas durante a putativa pandemia, tentando estabelecer a forma como nos devíamos comportar?
“Não olhemos, também, a que este interesse paternal é exercido pelo Estado, e que o Estado não é uma entidade abstracta, mas se manifesta através de ministros, burocratas e fiscais — homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto, do ponto de vista moral, se não de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilância ou tutela em que sintamos uma autoridade plausível.
Sobre a estupidez da lei seca, falava-nos da corruptibilidade dos funcionários públicos, os mesmos que deveriam vigiar os comportamentos, quase sempre actuando a desfavor dos mais débeis da sociedade.
Também nos alertava para o perigo das empresas “afectadas” pela legislação “virtuosa”, como é caso hoje dos bancos, onde a regulação é tão pesada – “é tudo para proteger o consumidor” – , que na verdade elimina o aparecimento de qualquer concorrência; ou seja, os regulados de grande dimensão são precisamente aqueles que defendem mais intervencionismo. Até têm os políticos a clamar sempre por mais!
Vejamos, em concreto, como Fernando Pessoa analisou a lei seca:
“Não olhemos a isto tudo, que indigna e repugna; olhemos só às consequências rigorosamente materiais da Lei Seca. Quais foram elas? Foram três.
- Dada a criação necessária, para o “cumprimento” da Lei, de vastas legiões de fiscais — mal pagos, como quase sempre são os funcionários do Estado, relativamente ao meio em que vivem —, a fácil corruptibilidade desses elementos, neste caso tão solicitados, tornou a Lei nula e inexistente para as pessoas de dinheiro, ou para as dispostas a gastá-lo. Assim esta lei dum país democrático é, na verdade, restritiva apenas para as classes menos abastadas e, particularmente, para os mais poupados e mais sóbrios dentro delas. Não há lei socialmente mais imoral que uma que produz estes resultados. Temos, pois, como primeira consequência da Lei Seca, o acréscimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado, e, ao mesmo tempo, o dos privilégios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam;
- Paralelamente a esta larga corrupção dos fiscais do Estado, pagos, quando não para directamente fornecer bebidas alcoólicas pelo menos para as não ver fornecer, estabeleceu-se, adentro do Estado propriamente dito, um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização extensíssima, coordenada e disciplinada, com serviços complexos perfeitamente distribuídos, destinada à técnica variada da violação da Lei. Ficou definitivamente criado e organizado o comércio ilegal de bebidas alcoólicas. E dá-se o caso, maravilhoso de ironia, de serem estes elementos contrabandistas que energicamente se opõem à revogação da Lei Seca, pois que é dela que vivem. Afirma-se, mesmo que, dada a poderosa influência, eleitoral e social, do Estado dos Contrabandistas, não poderá ser revogada com facilidade essa lei. Temos, pois, como segunda consequência da Lei Seca, a substituição do comércio normal e honesto por um comércio anormal e desonesto, com a agravante de este, por ter que assumir uma organização poderosa para poder exercer-se, se tornar um segundo Estado, anti-social, dentro do próprio Estado. E, como derivante desta segunda consequência, temos, é claro, o prejuízo do Estado, pois não é de supor que ele cobre impostos aos contrabandistas;
- Quais, foram, porém, as consequências da Lei Seca quanto aos fins que directamente visava? Já vimos que quem tem dinheiro, seja ou não alcoólico, continua a beber o que quiser. É igualmente evidente que quem tem pouco dinheiro, e é alcoólico, bebe da mesma maneira e gasta mais — isto é, prejudica-se fisicamente do mesmo modo, e financeiramente mais. Há ainda os casos, tragicamente numerosos, dos alcoólicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoólicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedâneos — loções de cabelo, por exemplo —, com resultados pouco moralizadores para a própria saúde. Surgiram também no mercado americano várias drogas não alcoólicas, mas ainda mais prejudiciais que o álcool; essas livremente vendidas, pois, se é certo que arruínam a saúde, arruínam contudo adentro da lei, e sem álcool. E o facto é que, segundo informação recente de fonte boa e autorizada, se bebe mais nos Estados Unidos depois da Lei Seca do que anteriormente se bebia.
O intervencionismo acabava sempre por ter resultados contrários ao inicialmente pensado e a criar novos problemas, segundo defendeu:
“Conceda-se, porém, aos que votaram e defendem este magno diploma que numa secção do público ele produziu resultados benéficos — aqueles resultados que eles apontam no acréscimo de depósitos nos bancos populares e caixas económicas. Essa secção do público, composta de indivíduos trabalhadores, poupados e pouco alcoólicos, não podendo com efeito, beber qualquer coisa alcoólica sem correr vários riscos e pagar muito dinheiro, passou, visto não ser dada freneticamente ao álcool, a abster-se dele, poupando assim dinheiro. Isto, sim, conseguiram os legisladores americanos — “moralizar” quem não precisava ser moralizado. Temos, pois, como última consequência da Lei Seca, um efeito escusado e inútil sobre uma parte da população, um efeito nulo sobre outra, e um efeito daninho e prejudicial sobre uma terceira.
A liberdade individual acima de tudo: “Nenhuma lei é benéfica se ataca qualquer classe social ou restringe a sua liberdade. As classes sociais não vivem separadas, em compartimentos estanques. Vivem em perpétua interdependência, em constante entrepenetração. O que lesa uma, lesa todas. A lei que ataca uma, é a todas que ataca. Todo este artigo é uma demonstração desse facto.”
Sobre os “tachos” dos políticos nas grandes empresas
Depois de termos “enterrado” 3,5 mil milhões de Euros na bancarroteira TAP, algo como 350 Euros por cada português, incluindo crianças, pergunta-se para que serviu? Nada mais nada menos para manter os tachos da clientela do regime.
Fernando Pessoa também deixava a sua posição clara a este respeito.
“Escândalos ainda recentes, que se tornaram conhecidos do público através dos relatórios publicados no Diário do Governo, vieram pôr mais uma vez em evidência a inutilidade prática dos Conselhos Fiscais e dos Comissários do Governo — inutilidade reconhecida no estrangeiro pela substituição a essas entidades, realmente fictícias, de outras mais susceptíveis de se desempenhar do mister que a nossa legislação impõe àquelas. Os Conselhos Fiscais e os Comissários do Governo — aqueles mais do que estes — são pontos de apoio da confiança do accionista, que julga que neles encontra o controle da aplicação e a salvaguarda dos capitais que confiou ao Banco ou à Sociedade Anónima adentro, ou junto, da qual eles funcionam.
Reconhecendo as Sociedades Anónimas que a melhor forma de chamar o capital é a distribuição ruidosa de grandes dividendos, procuram frequentemente, por meio de lançamentos artificiais, encobrir um estado verdadeiro de pouco desafogo; publicam, para dar uma aparência de prosperidade, relatórios de prosa literária no fim dos quais os accionistas são definitivamente ludibriados pela confiança que lhe traz o inevitável “parecer” do Conselho Fiscal, com o costumado voto de louvor à Direcção, e a indicação aos accionistas que aprovem o Relatório de contas e a distribuição de dividendos que ele consigna.
Os accionistas aprovam tudo — umas vezes porque o dividendo é magnífico, outras porque simplesmente confiam na indicação que lhes é dada. E a Direcção e o Conselho Fiscal recebem os respectivos louvores. São homens hábeis, uns; são homens sérios, outros. Tudo está, pois, necessariamente certo.
Quando se cai na suspensão de pagamentos, os accionistas acordam. Mas, como esperavam que o Conselho Fiscal os acordasse, e o Conselho Fiscal dorme por natureza, acordam sempre tarde e perdem… não o comboio, mas o dinheiro. Há Sociedades Anónimas em que não acontece isto. Mas há porventura alguma Sociedade Anónima em que, tanto quanto o sabe o accionista, não possa acontecer isto? Que elementos tem o accionista para poder saber ao certo que isso lhe não pode acontecer? A prosperidade do Banco ou da Companhia? Mas a prosperidade é a que lhe é dada pelos dividendos, e que sabe ele se esses dividendos não são o seu próprio capital e o dos credores da Sociedade Anónima, em vez do lucro autêntico da prosperidade verdadeira de uma sociedade progressiva? Sabe o accionista ao certo se não é assim? Não sabe, porque aqueles elementos em quem delega a fiscalização, 1.º não fiscalizam, 2.º mesmo que fiscalizem, não sabem fiscalizar. Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que examinam a valer as contas da Sociedade Anónima? Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que têm as habilitações precisas, de contabilistas, para esse exame? Salvo casos excepcionais, os membros dos Conselhos Fiscais são escolhidos por serem homens sérios e de boa posição social. Não consta, porém, que a seriedade seja a contabilidade, nem que a boa posição social seja um curso intuitivo de guarda-livros.
Tudo isto, no fundo, é uma comédia sem graça. A Direcção de uma Sociedade Anónima é, por natureza, um conselho técnico de gerência; o Conselho Fiscal de uma Sociedade Anónima é, e por natureza, um conselho técnico de fiscalização. A Direcção produz resultados; o Conselho Fiscal verifica esses resultados. E como os resultados se traduzem por números, isto é, por contas, parece que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente especializada no exame e conferência de contas. E parece também que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente suficientemente independente da Gerência para poder fiscalizar essas contas com independência. O que se faz entre nós? Elege-se um Conselho Fiscal de pessoas de probidade e incompetência e, é claro, de pessoas em magníficas relações de amizade com a Gerência, e, portanto, com toda a confiança nela. Em resumo: o melhor fiscal dos actos de alguém é um amigo incompetente. É ou não uma comédia?
Dos Comissários do Governo nem é bom falar. Dos membros do Conselho Fiscal ainda se pode presumir, visto que são accionistas, um certo interesse pela Sociedade Anónima a que pertencem, se bem que o interesse não crie competência, nem pese mais, na maioria dos casos, que o desleixo natural de quem é incompetente e confiado. Mas dos Comissários do Governo nem esse presumível interesse se pode presumir. São funcionários do Estado, que é, como toda a gente sabe, o mais mal servido de todos os patrões. São nomeados por obscuros lances do xadrez partidário, em prémio de serviços políticos e para que veraneiem todo o ano no seu comissariado; são nomeados para não fazer nada, e é efectivamente o que fazem. Deles, pois, é o Reino dos Céus… Deixemo-los e volvamos à terra.
E assim é que deve ser. De todas as formas das sociedades comerciais as Sociedades Anónimas são as que mais se prestam ao abuso e ao desleixo da Gerência, pois que nelas há uma intervenção já teoricamente periódica, mas, em geral, praticamente nula dos sócios (isto é, dos accionistas) na gerência. Há mister, pois, que deleguem em alguém a fiscalização que nem podem, nem em geral sabem, exercer. Delegá-la em Conselhos Fiscais equivale a delegá-la em ninguém, ou a delegá-la na própria gerência a fiscalizar.”
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.