A caminho da serra do sol nascente sente-se o ar a rarear. Respiramos nuvens e deixamos o Atlântico para trás.
Há muito tempo para pensar, se por acaso temos de sair do nosso ninho habitual rumo a outros mundos. Cada casa, cada casario, cada vila, cada cidade. Cruzamos essas vidas todas na distância e reparamos que nada realmente importa, e tudo importa tanto. Pois o dia continua a nascer e a morrer no horizonte, enquanto destinos são influenciados por directivas, resoluções, leis, normas e tiranias várias, de gatos, ratos e porcos gorduchos sentados a fartas mesas, comendo alarvemente enquanto tricotam fio para nos asfixiar em teia.
Mas nós, nós lá continuamos todos, cada um a tentar comprar a saca de pão diária, a tentar ser a sua melhor versão, a cismar se a sua herança real será a mais serena e amorosa para seus descendentes.
Andamos todos ao mesmo. E no caminho frio, vencendo montes, rumo à serra, pensando se a neve cá chega para nos fossilizar os anseios, tento espreitar cada encosta, e imaginar que vida de outra pessoa (serás tu?) atravesso ali, se lhe (se te) apetece tanto gritar a ti, como a mim, devorar as árvores num trago, e em duas passadas galgar montanhas e ultrapassar tudo.
Um planeta de titãs. De tanto nos quererem convencer que a chave de salvar o planeta está algures no nosso bolso, certamente que nos insuflam as pernas para sermos titãs, a dar passadas entre montanhas como quem faz um corta-mato simples por caminhos de cabras.
Por esse caminho espreitam brotos de eucalipto a encarrapitarem-se por troncos negros de árvores mortas. Sempre nasce alguma coisa. Somos tão importantes para a Mãe Natureza que lá vemos todas as nossas pegadas a ser apagadas com relativa facilidade.
Mais tempo, menos tempo, falar com a geologia seria, aí sim, ver tempo a sério. Tempo que nos deixa a tiritar de frio nas nossas manias e talvez a neve chegue, mas, por enquanto, os gatos espreguiçam-se no sol de São Martinho.
O nosso caminho é tão pequeno que eu ainda tenho de explicar às avós da família porque é que agora não se põe pó de talco no rabinho dos seus netos.
Então, agora que já todas estas gerações pensam que aquilo é cheirinho de bebé, afinal os senhores da Ciência, que só estavam a vender coisas boas e práticas (e até inoculações), alegadamente deixaram que fosse parar amianto aos simpáticos recipientes com um sorridente bebé desenhado?
(Sim, aquele amianto que esteve tanto tempo nos cobertos das escolas, telhas partidas a deitar veneno em pulmões de crianças e seus gritos de brincadeiras, mas só o tempo o mostra, o veneno, quero eu dizer, muito tempo.)
Ainda por cima, de vez em quando, lá se fala baixinho que as fraldas – tão práticas que até podemos deitar fora – também têm veneno que fica ali encostado horas a fio, a marinar, durante mais de dois anos, a envenenar-nos os filhos. Enquanto se sussurra que trabalhadoras das fábricas destas fraldas aparecem, por vezes, a avisar que têm de usar equipamento especial para trabalhar, e que várias colegas adoeciam só de manusear o que ali se fabrica.
Mas vai tudo ficar bem.
Cada um mede a pegada com a lente que (mais) lhe convém. Até porque o frio sempre vem e, enquanto nos cruzamos pelo caminho, sobra pouca força para engolir as árvores com tantas queixas; e se nos dói as costas de quebrar o corpo ao meio na luta pela saca de pão, quem é que tem tempo de se arreliar com tudo isto? (O tempo perguntou ao tempo quando tempo o tempo tem…)
Como se criam estas crianças para a ditadura?
Como lhes explicamos que talvez possam ficar presas na gaiola, para prevenir, para precaver, para antecipar, porque é melhor para eles? (Eles quem?)
A caminho da serra do sol nascente sente-se o ar a rarear. Sinto que se abro a boca para berrar me asfixio, engolir as árvores parece desespero e começo a maquinar planos de sobrevivência.
Lá voltamos nós, cada um no seu cantinho, a cismar, a pensar se bater chocalhos para espantar demónios adiantará realmente, ou se estaremos apenas a aliviar a consciência sobre a nossa resposta… quando os bebés, já crescidos, nos perguntarem onde estávamos no momento em que o grilhão lhes torneou o tornozelo.
Sabes tu?
Mariana Santos Martins é arquitecta
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