Os anos sucedem-se e assim mais um se vai findar, o que sempre acontece para as barrigas cheias ou para as barrigas vazias, por entre ventos frios no hemisfério norte ou brisa morna no hemisfério sul, porque assim todos concordaram.
No fio dos últimos dias do ano, Nostradamus escrevia em enigmas para acertar na hora que o relógio apontava, pelo menos duas vezes em cada dia. Vibrava com a antecipação da tragédia e, com o aproximar da meia noite derradeira, vários discípulos imaginários do império dos rios sem dono começavam a rabear para apostar as fichas na leitura dos seus vaticínios.
Desde pequenino que ensaiava seus poemas por entre o bafio de salas fechadas, ele próprio então desconhecedor de seu poder transcendente. Bem que cantarolava o que se avizinhava para as aranhas debaixo da cadeira mas elas não ouviam. E que teriam sentido as pobres, de pernas esmagadas e vida sumida por entre as suas teias envoltas no pano húmido que a avó foi buscar, para prontamente limpar aquela inaceitável invasão?
Terão porventura pensado, “o menino bem avisou”? Nostradamus duvida que tenham tido sequer tempo. Zás! E morreram.
Quando, anos mais tarde, em corredores frios de pedra, Michel (era este o primeiro nome do jovem) aprendeu as artes da medicina, já seu coração ia recheado de pensamento, astrologia e literatura. Que alquimia aquela!
Tão notável era que se notabilizou pelo protocolo contra a peste, que assolou um então não tão velho continente, mandando remover os mortos abandonados pelo pânico, limpar os doentes e dar-lhes vitamina C. Autêntica magia, hoje sabemos que completamente desacreditada pela sienciah (como a astrologia).
Mas eis que Nosferatu se cruza com o nosso profeta e, em silêncio, rouba a vida da pobre mulher de Michel, sem sequer poupar a vida a seu filho. Zás! E morreram. (Mas foi coincidência.)
Nosferatu era um esquálido rapaz, que sempre fazia questão de rejeitar todos os cookies dos sítios de internet que utilizava. Lia muito, por isso via mal ao longe, e suas unhacas compridas afastavam potenciais senhorios pelo que era um problema conseguir casa para arrendar.
Atraído pelo cheiro de carne humana, Nosferatu não resistiu aos encantos exalados pela esposa de Nostradamus e lá lhe sorveu a vida e espalhou pragas em redor. Fontes próximas deste anorético demónio, que também acompanhavam de perto as campanhas do senhor doutor, asseguram que, não tivesse este episódio histórico acontecido – se acaso tivesse ele conseguido um T2 em Olivais Sul – e na verdade Nostradamus não se confrontaria com o verdadeiro alcance do seu poder de divinação, ao sofrer a viuvez antecipada pelo esfaimado rapazote.
Isto só prova a importância de um bom agente imobiliário. Como muitas outras coisas na vida.
Já em Portugal, um operador de telemarketing chamado Noel, lê esta nossa saga, de barriga cheia de sonhos pela quadra natalícia, maravilhado com a suma importância desta crónica na sua vida íntima, flagelada que é nos últimos anos por ter seu nome de baptismo em constante confusão com um acrónimo que mata qualquer reputação: No Observed Adverse Effect Level (NOAEL).
Muito transtorno profissional e social acometia Noel todo este tempo, por esta confusão. Pois está bom de ver, que toda a gente sabe, que não há nada mais arrepiante do que não causarmos efeito algum. Ora, imaginem o que sentiria ele, se caminhasse na praia e, olhando para trás, não visse as suas pegadas?
Teria sido o mar? O vento? Nosferatu deslizando numa última e fatal travessura de quebrar o espírito?
Malogrado o dia em que se lembrou Nostradamus de prever que Noel, de todas as pessoas do mundo, seria a nova encarnação de praga bem mais contínua e silenciosa: a da impotência e ausência. A invisibilidade e nulidade, de viver a vida sem deixar pegadas, sem causar efeito, sem sequer matar as aranhas debaixo da cadeira da sala bafienta.
Pois será que foi profecia, ou o dito causou o acontecido?
Há quem sinta que é melhor nem ler, nem ver, sob risco de o fazer verdade. E a verdade não é para todos, e todos sabem disso.
Os anos passam, mais um passará e outros sempre virão, para quem esteja e para quem não esteja também.
Ditoso o leprosário onde se movem os incautos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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