Como muitíssimos brasileiros mal informados, estava eu tranquilo a assistir televisão – uma pacata e sangrenta partida do enlameado rúgbi inglês – quando uma nota no telefone celular me informou que uma baderna em verde e amarelo estava destroçando instalações do Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Porquê mal informado?
Porque no dia anterior as águas turvas chamadas redes sociais – nas quais não navego – já haviam antecipando a possibilidade desses atos de pirataria política.
Busquei o socorro de um ditado popular para tentar começar a explicar a um amigo português, Pedro Almeida Vieira, a minha visão – perfunctória e apressada – do acontecimento:
– Arrombada a porta da casa, coloca-se o cadeado.
[N.D. Os adágios na língua de Camões têm distintas versões de um lado e do outro do Atlântico; em português europeu dizemos simplesmente “casa arrombada, trancas à porta”]
Vamos aos fatos.
Pouco horas depois da arruaça vandálica, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, demitiu seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, que há poucos dias era – vejam só! – o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.
Onde estava Anderson em dia tão movimentado? Nos Estados Unidos, na Flórida, onde, por acaso (será?) se encontra exilado por vontade própria o ex-presidente.
Em Anderson foi posto o primeiro cadeado.
Horas mais tarde, o ministro Alexandre de Moraes, o mais temido do Supremo Tribunal Federal, afastou, por noventa dias, o próprio governador.
Segundo cadeado posto.
Ora, a tomada e destruição dos prédios mais simbólicos da democracia brasileira certamente não se restringirá a esses dois cadeados. Exigirá outros. Mas quem os colocará? E em quem?
Isso é o que veremos nos próximos capítulos da novela televisionada que teve início ontem.
Para irmos mais além dos furibundos editorais da imprensa e dos sempre inflamados discursos dos políticos, que pedem cabeças e mais cabeças, seria interessante darmos um passeio pelas esquisitices da administração pública brasileira, esquisitices que seguramente contribuíram para o descalabro de 8 de janeiro.
O Brasil é constituído por 26 Estados e um Distrito Federal (onde fica Brasília, claro). Tem um Estado que é mais populoso que muitos países: São Paulo, com seus 45 milhões de habitantes. E tem Estados com menos de um milhão de habitantes. Todos eles contam com forças policiais fardadas e armadas: as Polícias Militares.
O Distrito Federal, como diz o nome, deveria ser um distrito, ou seja, uma unidade administrativa dependente de autoridade maior. Além da capital federal, também conhecida como Plano Piloto, o Distrito Federal conta com uma dezena de povoações menores, chamadas cidades-satélites.
Criado em 1960, o Distrito Federal tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Até 1988 era chefiado por alguém indicado pelo Presidente da República. Mas, no auge de euforia democrática da Constituinte de 1988, recebeu o direito de escolher pelo voto seu governador, três senadores, oito deputados federais e vinte e um deputados locais (chamados distritais).
Agora, simultaneamente à carnificina que foi a última eleição presidencial, o Distrito Federal reelegeu governador um simpatizante do Governo Bolsonaro: o advogado Ibaneis Rocha.
Então o paradoxo que temos hoje é: um aliado (ou ex-aliado, nunca se sabe porque os políticos brasileiros mudam facilmente de posição) de Bolsonaro no comando da cidade onde ficam as sedes das embaixadas e os prédios dos três poderes, entre os quais está o palácio de despachos do presidente Lula.
Embora tenha obtido a liberdade de escolher seus políticos, o Distrito Federal continuou recebendo verbas federais para pagar suas forças policiais e os funcionários do sistema de saúde e educação (primeiro e segundo graus). Ou seja, continuou distrito.
Essa baderna, arruaça, barbárie ou mesmo tentativa de golpe – embora anunciada pelas estrondosas trombetas das redes sociais – não foi contida pela força oficialmente encarregada de impedi-la: a Polícia Militar do Distrito Federal. Daí as punições às autoridades de Brasília.
Ocorre, porém, que o Governo Federal tem seus próprios mecanismos de vigilância: as poderosas Polícia Federal e Agência Brasileira de Informação (Abin), e mais os sistemas de informação das forças armadas que, em tese, todos eles, deveriam estar alertas para a eclosão de um atentado predatório de tais dimensões.
Foi mesmo uma tentativa de golpe?
Muita gente acha que sim. Mas as perguntas são muitas. Os que invadiram os palácios estavam à espera de alguém que viesse assumir a cabeça do complô? Quem seria esse alguém? Por que se retiraram sem resistência dos prédios públicos se eram tão numerosos?
Destruídos os palácios, chega o momento de descobrir quem financiou a vinda de tanta gente à capital (fala-se em quatro mil pessoas, transportadas em cem ônibus, centenas delas já presas). Quem são e quantos são?
Nas redes sociais há milhares de rostos exibidos em retratos tirados dentro dos edifícios invadidos. Serão todos acusados?
Cabe ainda uma pergunta indigesta: haverá punidos dentro do próprio governo federal que, a rigor, estava no comando da nave chamada Brasil fazia uma semana?
Enfim, só nos resta esperar que agora as autoridades brasileiras, que tanto falharam, se mostrem à altura de enfrentar esse novo desafio, que é esclarecer como, num certo domingo sem futebol, o país ganhou negativamente as manchetes de todo o Mundo.
E profetizar, como o faria um iracundo editorialista de um jornal do século XIX: “Faltarão cadeados!”
Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco
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