VISTO DE FORA

A culpa, a responsabilidade e o acampar na praia de Matosinhos

person holding camera lens

por Tiago Franco // Janeiro 26, 2023


Categoria: Opinião

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A primeira coisa que me passou pela cabeça na notícia de uma mãe e o seu filho que, desde Setembro, vivem numa tenda na praia de Matosinhos foi perguntar como ali foram parar. Já quando leio os comentários sobre esta situação, a palavra que se atravessa à minha frente é “culpa”.

Mais do que perceber e até contribuir para a solução, a turba gosta de apontar culpados.

Estamos numa fase da evolução em que passámos a sobreviver em Portugal, em vez de viver. Todos os dias são de luta, todos os dias são de um salve-se quem puder sem simpatia alguma pelo próximo, seja lá qual for o seu nível de sofrimento.

person standing beside seashore

Há quem de imediato puxe pela carta do chauvinismo dizendo que, fossem mãe e filho originários da Ucrânia, já teriam uma casa entregue pelo Estado. Como se refugiado de guerra fosse uma espécie de estatuto dourado que todos um dia sonhamos ter.

É um argumento de índole racista, ligeiramente mais elaborado do que o habitual: “se fossem daquela etnia, já tinham casa”. Não vou roubar palco a quem por norma entra neste tipo de raciocínio e que todos percebemos quem são e de onde chegam. São pessoas que odeiam o Estado socialista e solidário, mas que exigem que este ajude toda a gente.

Boa parte dos “apontadores de culpados” – é isso essencialmente que se faz nos comentários das notícias –, julgam o filho de 40 anos, beneficiário do RSI [rendimento social de inserção] e questionam o facto de não trabalhar. “Tem bom corpo, que vá alombar”, é um dos mais lidos.

Fico especialmente estupefacto pela velocidade com que se critica um perfeito desconhecido sem saber que vida teve e como chegou ali. Lendo, fico com a sensação que era o plano à nascença – este, de aos 40 anos viver com a mãe numa tenda na praia de Matosinhos.

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Temos pouca, pouquíssima simpatia pelo próximo. Rastejamos tanto por migalhas que já nem suportamos a dor alheia.

Sobra aquela parte mais rebuscada que coloca o ónus da sua situação no facto de as rendas estarem muito caras e de os senhorios serem uma cambada de gananciosos. É um facto que as rendas em Portugal são exorbitantes, ou melhor, são fora de contexto para aquilo que é a realidade salarial do país.

E, claro, isso cria um problema a quem não tem casa própria, embora num país com cerca de seis milhões de apartamentos (dados do Pordata de 2021) dificilmente se compreende que a falta de alojamento seja de toda a gente e nunca do próprio. Por cada 1.000 habitantes existem 577 fogos, segundo um estudo da OCDE, o que faz a média portuguesa disparar em relação à dos países que integram esta organização.

Por exemplo, Reino Unido e Estados Unidos apresentam uma média de 433 e 421 casas por cada mil habitantes, respectivamente. Portanto, o problema está longe de ser a falta de oferta. Quando muito, a discussão colocar-se-á no facto de, numa idade sénior, uma pessoa não ter habitação própria e precisar de alugar.

blue wooden door with padlock

Este é um tema para o qual sou sensível – por motivos que não importam para este texto. Por isso, de uma forma geral, no caso desta mãe e filho – como faria se fosse a minha mãe –, eu tendo a compreender primeiro o que é que podemos fazer por nós, e só depois pensar, em última análise, o que deve o Estado Social fazer.

Não gosto, nunca gostei, que se apontasse para o Estado como primeira opção na resolução de problemas – como se o direito à habitação, inscrito na Constituição, incluísse uma cláusula de desresponsabilização individual, familiar e colectiva na gestão das nossas vidas.

Sou muito crítico comigo próprio nos passos dados e nos erros acumulados. Por isso, tenho imensa dificuldade em culpar o que me rodeia por opções de vida ou riscos tomados por mim. Guardo as consequências e culpo-me, sempre, pelos resultados. Considero que está em mim, quase sempre, a solução para tudo.

Por isso, é essa forma de ver a nossa responsabilidade, naquilo que é a nossa vida, que me leva a perguntar como é que aquela mãe e aquele filho chegaram à tenda.

Segundo percebi, a senhora trabalhou vários anos em empresas de Matosinhos, uma delas a antiga Nestlé. Como é que uma vida de trabalho e descontos dá uma pensão mínima de 200 e poucos euros?

Essa é a pensão que recebe alguém que trabalhava nos campos e nunca fez descontos. Todos temos avós, todos conhecemos histórias destas. Como é que um rapaz de 40 anos recebe RSI? Por que razão não tem subsídio de desemprego? Terá alguma incapacidade que não o permita trabalhar?

Não ouvi qualquer referência a uma procura activa de trabalho. E por fim, se lhe foi oferecida estadia numa camarata, num abrigo da autarquia, porque recusaram eles essa hipótese, dizendo que não se sentem confortáveis partilhando espaço? Não seria melhor que uma tenda?

A minha primeira reacção, num caso destes, seria enviar dinheiro para aquela família, para que pudessem estar um mês numa pensão qualquer. Não seria a primeira vez que o faria. Mas isso não me impede de colocar questões ou de imaginar que história de vida os levou ali. E repito: podem ali ter chegado por todos os infortúnios de uma vida sem sorte, mas… quem é que recusa um tecto?

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O Estado Social em Portugal falha, falha muito. Há cada vez mais pobres e a habitação social não chega para todos. Há especulação, há ganância, há corrupção, há desvio de dinheiro para as elites, para os bancos e para as PPPs das estradas. Tudo isso é verdade. Mas nós fizemos a nossa parte? Nós, ao longo da vida, fizemos a nossa parte para preparar o dia de amanhã? Esta mãe e este filho, eu, tu? Fizemos o que podíamos para não estarmos nesta situação?

Provavelmente não.

Todos temos a nossa história e a de quem nos rodeia. Todos vimos, ouvimos e fizemos coisas que nos cortaram garantias de um futuro melhor. Gostava de ver a realidade com outros olhos, mas, infelizmente, só consigo avaliar à luz do que vou vivendo. E o que vejo, perto de mim, são várias histórias de erros repetidos ao longo dos anos, que levam a uma velhice sem segurança, sem sequer um tecto garantido.

A história desta mãe e deste filho lembram-me algo mais próximo, e honestamente não consegui ver a reportagem até ao fim. Seja lá que passado os levou ali, espero que a senhora vá rapidamente para uma casa com um mínimo de conforto.

Mas não podemos, nem devemos, numa altura em que os problemas aumentam, esperar por ajuda divina, culpar o mundo e enfiar a cabeça na areia. Dificilmente sairemos da pobreza ou resolveremos seja o que for dessa maneira. Os primeiros culpados somos nós. Há sempre qualquer coisa que podíamos ter feito diferente.

girl holding umbrella on grass field

Penso nisto quase todos os dias quando recuo no tempo, até ao dia em que comprei a minha casa, aqui na Suécia. Cinco anos passados, com uma taxa de juro absolutamente incomportável, o risco de a perder é real. Eu que nunca confiei em mercados, e que assinei um contrato com taxa fixa por cinco anos, enfrento agora a hipótese de ter de a entregar a outra pessoa qualquer, pelo simples facto de a altura de renegociar o juro acontecer a meio de uma guerra que suga os recursos financeiros da Europa.

É então a guerra da Ucrânia responsável pela minha perda? Não. O responsável sou eu por ter comprado uma casa que dificilmente conseguiria pagar se o juro triplicasse. Eu sou o culpado de não ter assumido essa hipótese.

Da mesma forma que, se um destes dias ficar sem emprego, depois dos 45 anos de idade, e com integração no mercado mais difícil, a culpa também será minha. E porquê? Porque recusei todas as oportunidades de contratos permanentes, durante quase duas décadas, a troco de contratos temporários mais bem pagos.

Foi a minha opção, o meu risco. No dia em que correr mal, a culpa será minha. Não do meu empregador, do meu chefe ou do mercado.

É assim que eu vejo as coisas. Nós, indivíduos, somos os primeiros responsáveis pelos buracos em que nos metemos e a primeira força de salvamento para sair deles. Não nascemos numa tenda na praia, chegamos lá de alguma maneira. Não chegamos a meio da vida com 20 anos de trabalho, a viver em casa alugada, se não optarmos por isso, ou se as escolhas de vida não nos levarem aí.

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Não temos de viver todos a vida a pensar no amanhã, e muito menos descartar o Estado Social como bombeiro que deve ser. Mas achar que tudo nos é devido, por vezes depois de uma vida inteira sem pagar impostos, colocando sempre a culpa de tudo o que nos acontece no ambiente que nos rodeia, também não será grande ajuda à própria causa.

Portugal está a empobrecer a um ritmo alucinante. A Europa está a empobrecer também. Os apoios sociais vão disparar, os pedidos de ajuda por casa e comida são reais, dramáticos e em maior número do que os Estados conseguem responder.

Eu sou um defensor da solidariedade social através de um sistema de impostos progressivo, e acho que boa parte do dinheiro ganho pelo Estado, neste jackpot que a inflação trouxe, deveria ser aplicado no auxílio às famílias. Isto não implica que deixemos de lutar e tentar fazer a nossa parte.

Estamos mais pobres. Todos. Ou quase todos. É bom que percebamos isso e que tomemos consciência que temos de fazer a nossa parte para não engrossarmos as estatísticas.

A solução começa sempre em nós.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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