Esta semana escrevo em condições um pouco mais difíceis, com pouco acesso à Internet, entre aeroportos e noites mal dormidas. Acompanho ainda de mais longe o que se vai passando em Portugal, mas, sempre que consigo uns minutos ligado “à rede”, oiço mais um disparate. Ou é coincidência e azar meu, ou, então, é o disparate que tem mais destaque sem que eu perceba porquê.
Carlos Moedas, reagindo ao incêndio na Mouraria, que vitimou duas pessoas e revelou as deploráveis condições de vida de outros tantos, dizia que só deveríamos aceitar novos imigrantes com contratos de trabalho. Não sei se perceberam, mas a dado momento desta história deixaram de ser duas vítimas mortais do acidente e passaram a ser dois imigrantes, dois indianos.
Vi inclusivamente quem tivesse escrito que, afinal, o fim dos alojamentos locais tinha aberto lugar para ocupações de indianos, paquistaneses, nepaleses. Como se entrassem em casa das pessoas sem pedir. Como se não pagassem uma renda. Como se não fossem eles a viver em condições degradantes.
O discurso de Moedas confundiu-se com o de Ventura, que por sua vez se alinhou com o de Montenegro. Há cada vez menos linhas vermelhas entre PSD e Chega, e vai ficando óbvio o que aí vem nas próximas legislativas. Uma coisa é certa: os indianos ao monte na Mouraria são responsáveis pelo estado de degradação das casas naquela zona. Não só vêm para cá roubar empregos de sonho no UberEats como ainda ficam com as casas decrépitas dos bairros lisboetas… Um flagelo, não é?, que urge acabar…
Apanho uns minutos no aeroporto seguinte, e eis uma portuguesa, a viver na Síria, a queixar-se aos microfones da RTP da falta de solidariedade depois do terramoto. Todas as ajudas chegam à Turquia e para a Síria, segundo ela; e nem uma equipa com um caniche se vê aparecer. A solidariedade é sempre aquele pau de dois bicos fácil de explicar, mas difícil de compreender.
Três aeroportos depois, chego ao Bahrain, uma pequena ilha no meio do Golfo Pérsico, sensivelmente do tamanho de Berlim. Um país riquíssimo, com apenas 1,5 milhões de habitantes, dos quais quase metade são imigrantes dos vizinhos asiáticos mais pobres: indianos, filipinos, paquistaneses, nepaleses e todos os que aceitam viver na escravatura moderna que representam as cidades emergentes nos desertos da Península Arábica.
De Riade a Manama, de Doha ao Dubai, o conceito é o mesmo: cidades futuristas feitas para atrair americanos e europeus, promessas de oásis verdejantes no meio do deserto com todos os luxos em países onde a água é um bem escasso; e ali ao lado, bairros degradados que abrigam a metade da população que é explorada e que aceita esta vida, porque, apesar de tudo, ainda conseguem enviar dinheiro para as famílias.
Não há conversa sobre a dignidade ou sequer sobre as condições de trabalho. Foi tema durante o Mundial devido à visibilidade do evento, mas há mais de 10 anos que já vejo esta realidade. Em Doha, no Dubai, em Abu Dhabi e agora no Bahrain. É a escravatura do século XXI para deleite dos turistas, dos investidores, da minoria da classe média alta que por aqui passeia em carros enormes e com gastos de combustível que, na Europa, nos dias de hoje, seriam apenas absurdos.
Acresce que a ponte que liga esta ilha ao território saudita, transforma-a numa espécie de Algarve onde os vizinhos, com mais restrições do outro lado, vêm passar fins-de-semana, beber sem controlo e fazer barulho com potentes carros. Imagino que seja por isso que num espaço tão pequeno existam centenas de alojamentos e, pelo que observo, tentam aumentar o país criando várias ilhas artificiais. Para quem já passou no Dubai, o Bahrain caminha para lá com cerca de 10 anos de atraso. Mas a receita é a mesma.
Visito a principal mesquita da cidade (Al Fateh Grand Mosque) e constato o habitual de cada vez que entro num templo religioso. Seja de que fé for, nada do que oiço faz sentido ou encaixa na forma como vejo o mundo. Lá fora, pelas portas gigantes de madeira indiana trabalhada à mão, consigo ver trabalhadores em condições miseráveis, debaixo de um sol abrasador, a construir um novo arranha-céus, provavelmente com salários pouco decentes.
Lá dentro, no local de devoção, explica-me o guia que todas as carpetes, feitas com lã de ovelha, vieram da Irlanda do Norte, os candeeiros chegaram de Viena e Paris, o mármore é italiano. A mesquita, com espaço para sete mil pessoas, custou vários, variadíssimos, altares das Jornadas Mundiais da Juventude, quando foi construída na década de 80.
Diz-me o senhor que a responsabilidade mais importante de um muçulmano é a devoção. Diz o profeta, nas Escrituras, que “criei cada um de vocês para que me pudessem adorar”. E é isso que é aceite. Devoção e adoração nas preces diárias. A responsabilidade de cada crente, segundo a explicação. Ajuda do profeta, em caso de necessidade, um direito de cada muçulmano.
Eu oiço, oiço e oiço, mas não questiono. Sinto-me num mundo paralelo quando o senhor me explica que o profeta é responsável por tudo o que vemos. Aquelas paredes, aquelas construções, tudo. Lembro-me também daquele senhor que disse, a propósito de terramotos, que os engenheiros civis portugueses mentiam muito nas construções que validavam. O que dirão os do Bahrain então? Fazem cálculos de estruturas, levantam aquelas paredes e cúpulas e, no fim, o Profeta é que assina.
Faz-me lembrar aquela vez em que, ao lado de um casal coreano em Belém, na Palestina, um guia local apontou para o céu e disse: “aqui passou a estrela que anunciou o nascimento de Jesus Cristo”. O coreano ao meu lado levantou a máquina e tirou uma fotografia a uma estrela que, dizem, ali passara dois mil anos antes.
Tudo isto me faz impressão. Nada disto faz sentido para mim. Mas vou. Oiço, tento perceber como pensam, no que acreditam ou de que forma se relacionam com o mundo. Muçulmanos, cristãos, hindus, budistas… No que a religiões diz respeito, sou de igual forma ateu para todas.
Leio algures que os portugueses passaram nesta ilha, no século XVI, na altura em que queriam garantir as rotas no Golfo Pérsico com fortificações no Omã e, aparentemente, nesta ilha. Lá está um forte português, muitíssimo bem conservado, como uma das principais atracções do país. Curiosamente, conseguem manter e rentabilizar uma relíquia feita por nós, algo que, a avaliar pelas muralhas que vão caindo no Alentejo, não parecemos ter grande interesse em fazer dentro de portas.
Ao quinto aeroporto, vários Xanax e copos de vinho depois, tal Clara Ferreira Alves nas suas histórias de viagem, chego finalmente à Índia. A tempo de assistir à conclusão de uma história de amor, um casamento proibido entre castas diferentes e não aceite pelas famílias.
Outra realidade com uns séculos de atraso e que, à luz de um europeu, não faz sentido. Mas faz para mim, que acompanhei durante anos os dramas de quem lutou para que este dia chegasse, e que aceitou ir contra tudo por amor.
Um dia disse-me o meu amigo: “Não sei se o meu pai lá estará no dia do casamento… Podes ficar ao meu lado?”. De modo que fui comprar mais uma caixa de Xanax. Não perderia isto por nada.
A história, as cores, as lágrimas e os cheiros, no próximo texto.
Até lá.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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