a deriva dos continentes

Quando se cai na poção mágica

por Clara Pinto Correia // Fevereiro 17, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

E também tudo aquilo que consideramos impossível precisa apenas de ser feito.

Plínio[1]

HISTÓRIA NATURAL


Protegida pelo braço caloroso do ZL, a professorinha preocupada com as perguntas dos seus meninos depois de terem assistido ao nosso filme disse que se chamava Lídia Augusta, e ele disse oh mas que nome grandioso, olhe querida, eu sou o ZL, e ela é a C e de certa forma também somos os dois professores, e não vai acreditar mas conhecemo-nos ontem à tarde e apaixonámo-nos durante a noite, enquanto estávamos a jantar, e depois viemos para aqui a conversar e ver nascer a manhã e foi quando demos o nosso primeiro beijo e depois apareceu a menina com todos os seus meninos, não acha bonito? Isto fez a Lídia Augusta, que olhando melhor era assaz boazona, fazer um grande oooooh, abraçar imenso o ZL à laia de parabéns, e a seguir juntar ao abraço a conversa de como sacrificava tudo à oferta do imenso amor que tinha para dar dentro de si mas, pronto, era tudo por causa do marido.


É um bocado chata, esta versão da vida das pessoas em que é sempre tudo muito triste por causa do outro membro do casal.

E então o marido da Lídia Augusta era contabilista, bastaram-lhe sete anos de casamento para ficar tão barrigudo quanto calvo, nunca fora grande espingarda na cama mas agora era mesmo o fim da picada porque eram só cinco minutos semanais na posição do missionário e ela até bebia mais do que a conta ao jantar para que o triste dever marital lhe roesse menos a alma, lia o Wall Street Journal à mesa, nunca queria ir à praia nem a Paris nem a Nova York nem a lado absolutamente nenhum porque em Portugal tudo está enxameado de turistas e para sair de Portugal toda a gente sabe que andam a cair cada vez mais aviões de manutenção mal feita devido à crise, de qualquer maneira a verdade é que só estava bem se pudesse estar a falar de fugas ao fisco e de offshores em águas internacionais o que o levava a literalmente fugir de casa todos os fins-de-semana para andar na farra com outros contabilistas, alguns autarcas, alguns bandidos da PJ, alguns bancários com conhecimentos, o ZL está a ver, não é, tudo péssima gente, e eu sozinha em casa porque ele não quer ter filhos, não quer ter um cão, nem sequer quer ter um gato persa que é uma raça hipo-alergénica, quando lhe falei de um peixe encarnado dentro de um aquário ele desatou a berrar-me se eu queria desequilibrar o Feng-Shui da casa mas quinze dias depois pedi a uma amiga que lhe perguntasse duas ou três coisas desse género e percebeu-se logo que ele me tinha berrado só por berrar, por causa do Feng-Shui é que não foi de certeza porque na realidade ele não faz a menor ideia do que é o Feng-Shui, assim como não faz a menor ideia do que é o karma mas isso não o impede de dizer que se eu for àqueles jantares dele lhe vou dar mau karma, ó ZL, olhe só para as minhas unhas, eu dantes não as roía mas é que estou a um passo do burnout, e o pior é que não quero, bem, é mais que não posso, não sei se o ZL me entende mas eu não posso pedir-lhe o divórcio porque ele percebe bem demais de contas enganosas e de dinheiro sujo e ia deixar-me na miséria, tenho a certeza absoluta. Ah, mas se me entrasse de repente na sala de aulas uma alma gémea, como lhe aconteceu ontem com a C,

Pois foi, ó Lídia Augusta,

Nova demonstração de Clara e Sebastião
Vê-se claramente nesta foto que não é a seriedade que afecta a felicidade.

rosnei-lhe eu, que entretanto me tinha sentado na relva com a turma inteira para esclarecer as dúvidas dos meninos, que não paravam de levantar as mãozinhas e eram positivamente hilariantes,

mas olhe, essa de se abrir a porta e entrar por ali dentro a alma gémea, ontem à tarde, assim como lhe aconteceu a ele, também me aconteceu a mim, boa? E vai daí, para todos os efeitos, a partir de agora mesmo esse homem está aí mas é meu. Mande esse atraso de vida da posição do missionário dar uma curva, vá a um banco de esperma e engravide já enquanto pode, diga-lhe que foi o padeiro, vá viver para casa de uma amiga que o gordo desconheça e mande-lhe os papéis do divórcio por correio registado com aviso de recepção, faça qualquer coisa por si, mulher, mas tire as patas de cima do gajo que eu vi primeiro, e muito legitimamente me saiu na rifa.

Disse aquilo num tom brincalhão para a pobre esposa repelida não se sentir ainda mais repelida, mas a verdade é que acabei por vociferar tantos detalhes sobre o nosso namoro que me parti a rir. E o ZL, que estava a ouvir-me com cada vez mais gozo, ainda me piscou o olho mas no fim ainda riu mais do que eu. Podíamos estar os dois a brincar, mas estávamos a brincar com o fogo. Estávamos era os dois a gostar muito de ouvir as nossas declarações crescentes de amor e compromisso.

Aaaaai,

suspirou a pobre Lídia Augusta, lá mesmo do fundo de toda a dor que assolava o seu coração,

vocês têm uma forma tão interessante e tão criativa de utilizar a língua portuguesa, e tudo o que eu digo, e tudo o que eu oiço, é tudo tão baço, tão banal, tão,

e estava na cara que a pobre Lídia Augusta ia desatar a chorar, pelo que o ZL voltou a abraçá-la, e, já que eu tinha montado uma conferenciazinha com os meninos, lá lhe vendeu a conversa da treta de eu ser muito boa a explicar assuntos difíceis às crianças e ao povo. Ela implorou-me que explicasse mesmo porque ela, que não tinha qualquer amor na sua triste vida, nunca conseguiria fazê-lo. Eu deitei a língua de fora ao J, virei-me para a turma e para todas as mãozinhas no ar que apareceram imediatamente, e falei-lhes dos livros do Astérix, onde havia um druida de roda de um grande caldeirão onde preparava a poção mágica que tornava invencíveis todos os gauleses lá da aldeia, sempre à tareia com os pérfidos invasores romanos.

Na segunda fila levantou-se logo a mãozinha de um menino armado em bom.

Todos não, s’tora. O Obélix não pode beber a poção mágica porque caiu dentro do caldeirão quando era pequenino.

Eu já te lixo, pestinha.

Que bom,

Respondi-lhe toda sorridente, como se a interrupção do puto não tivesse sido do pior intencionado carácter provocatório,

parece que temos aqui uma turma de sábios em Astérix. Pois é, meninos. Quem já caiu no caldeirão em pequenino não pode voltar a beber mais poção mágica. Ora acontece que eu e o ZL caímos os dois no caldeirão em pequeninos, mas depois esquecemo-nos. E então ontem à noite, ao jantar, estivémos os dois outra vez a beber poção mágica. Era uma poção mágica muito boa que há cá em Portugal, chamada Tiago Cabaço, e então como era muito boa nós bebemos muita, e foi por isso que ficámos assim como vocês viram, e é por isso que quem já caiu no caldeirão quando era pequenino nunca mais deve beber poção mágica, senão está sempre a fazer filmes e nunca trabalha, e a vida dos crescidos é trabalhar, não é curtir.

E foi com esta explicação, que mereceu pelo menos a concordância tácita de todas as criancinhas, que aliás adoraram o uso da palavra curtir, de onde se prova que já sabiam o que é que isso que queria dizer, que eu e o ZL fizemos finalmente rir a Lídia Augusta.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Estudioso e autor romano considerado o fundador da História Natural, a ciência que veio a dar origem à Biologia. Homenageando a sua natureza de grande cientista, morreu no ano de 76, data que poderá parecer familiar a alguns leitores, e por razões que ninguém pode discutir com a Natureza: Plínio ia de barco, a passar ao largo, quando o Vesúvio explodiu. Pediu ao comandante para se aproximar mais da margem, por forma a observar devidamente o fenómeno, e morreu envenenado pelos gases tóxicos da explosão. Ninguém sabe o que é que aconteceu aos outros tripulantes do barco.

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