VISTO DE FORA

Mais habitação, uma mão (que parece) cheia de nada

person holding camera lens

por Tiago Franco // Fevereiro 20, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Depois de ouvir a apresentação do programa “Mais Habitacão”, fiquei com a mesmíssima sensação das conferências com medidas novas no tempo da covid-19: não percebo metade e, no fim, tenho mais perguntas do que respostas.

Tirando aquela parte de ir sacar casas devolutas, tudo o resto é voluntário. Incentivos fiscais para quem quiser passar de alojamento local para arrendamento, ou 0% na taxação de mais-valias para quem quiser vender ao Estado. E se não quiserem? Montam-se tendas nos Jerónimos? Qual é o plano B nesta estratégia que depende da vontade alheia?

dresser beside sofa

Depois vem o cálculo do tecto das rendas: o valor da última somada à inflação anual e tal. Ora, em muitos casos, o problema está no início dessa frase: “valor da última renda”. Em princípio, foi essa que se tornou incomportável. Percebo a intenção, mas não sei se se ajuda alguém com essa fórmula de cálculo.

Aos bancos é dito que serão obrigados a disponibilizar uma taxa fixa de juro… mas não dizem é quanto. Já na última vez que os bancos foram obrigados a renegociar créditos, na verdade não aconteceu nada.

Esse é aliás um dos registos deste Governo: morosas apresentações públicas com medidas avulso, muitas com dúvidas na sua realização prática e, depois de acabada a teoria, pouquíssima concretização cá fora no mundo real.

Por exemplo, sobre o mundo real, eu gostava que nesta hora em que o Governo apresentou medidas que ninguém percebe, tivesse começado por nos explicar, talvez, quantas famílias fizeram pedidos de casas, quantas estão sinalizadas nos bancos por rendas em atraso, quantas acções de despejo meteram senhorios em tribunal. Ou seja, números para percebermos do que estamos a falar e do que precisamos. São 100 casas? 1.000? 10.000? Um milhão?

photo of canal between houses

António Costa diz que as licenças de construção vão ser simplificadas, e menos burocracia será necessária para se arrancar com a construção. Acho óptimo. Mas quem é que isso ajuda? Os construtores, imagino. Ou, depois de feitas, essas casas vão para o mercado de rendas acessíveis?

Também não percebi a reabilitação coerciva de casas devolutas. O primeiro-ministro diz que não é uma expropriação. Ai não? Então vão só recuperar a casa, metê-la a alugar e devolver a quem a deixou cair? Ui… já estou a ver os montes devolutos que se vão recuperar no Alentejo.

E quando o Estado diz que vai comprar casas ao preço do mercado, dentro de uma tabela qualquer (dito pela ministra da Habitação) sem taxar mais-valias, o que é que isso significa em concreto? Eu começo logo a imaginar os amigos dos amigos que andam em redor destas elites que nos governam, a embolsarem pequenas fortunas, com isenção de mais-valias e sacos azuis para a reforma.

É um defeito português, assumo, este de imaginar um esquema possível a cada nova regra. Mas com a experiência acumulada de assistir a desvios do erário público e enriquecimento ilícito da classe política, alguém me censura se começar a procurar buracos na narrativa?

Marina Gonçalves, ministra da Habitação, António Costa, primeiro-ministro, e Fernando Medina, ministro das Finanças, na apresentação do pacote legislativo para a habitação na passada quinta-feira.

Não ouvi nada, na conferência de imprensa, sobre casas desocupadas (habitáveis e não devolutas), mas já li qualquer coisa sobre leituras de luz e água para saber o quão ocupada é a casa anualmente. É capaz de ter sido um sonho e não uma coisa real. Tenho ouvido com cada disparate que, por vezes, já não sei diferenciar a realidade da ficção.

Para já, e posso estar enganado, fiquei com a sensação de que este conjunto de medidas pode ser uma mão-cheia de nada, caso os bancos e os proprietários não colaborem. O fim dos Vistos Gold parece-me ser, de claras, a medida mais positiva. E a recuperação de casas devolutas também, se for bem aplicada. O resto é um “logo se vê”.

Honestamente, sem a pura e dura construção de habitação social, não estou a ver como se resolve o problema das famílias que, por esta ou aquela razão, ficaram sem casa. É uma questão de opção, digo-o há anos. Menos BES, menos PPPs e menos auto-estradas e mais habitação, caso o artigo da Constituição seja para ser levado a sério.

grey concrete ruins near green trees at daytime

Consegui aguentar uma hora e 15 minutos da conferência de imprensa, até ao momento em que o Costa diz que o PRR – ao qual um jornalista tinha sugerido ir buscar dinheiro – não é uma conta-corrente ou a “mesada dos nossos pais”.

António… olha bem, o PRR é, sem tirar nem pôr, a mesada dos nossos pais. Os velhotes chamam-se Urbano e Erica, já nos dão mesada há 35 anos e nós, perto dos 40, não há maneira de sairmos de casa e de os convidarmos para um jantar num daqueles sítios onde se come de garfo e faca.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.