a deriva dos continentes

O silêncio dos inocentes

por Clara Pinto Correia // Fevereiro 24, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Acredito que és inocente, e que és bom. Apenas gostaria que todos fôssemos como tu.

Charles Dickens

DAVID COPPERFIELD, ou

The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

1850


Para encurtar razões, estive três semanas completamente isolada do mundo, dedicada apenas a beber copos e copos de café, a fumar quantidades de cigarros muitíssimo acima da minha média diária, a andar sempre toda produzida, a sentir-me cada vez mais feliz, e a ouvir cada vez mais piropos matinais sobre a minha incrível beleza[1]. Como é evidente, muito contribuiu para este caminho interior de descoberta de uma nova paz de espírito, que pelos vistos até me dava vontade de me arranjar melhor num sítio onde nem sequer se podia secar devidamente o cabelo, e que me fazia parecer tão bonita logo ao acordar[2], não ser obrigada a saber mais episódios sinistros sobre a Guerra da Ucrânia, nem quaisquer outros episódios sinistros tout court. Se alguém tentasse agredir-me com eles, escorriam-me logo por cima como água por pena de pato.

“Ah, viste aquela que esfaqueou o marido e depois o deixou a esvair-se em sangue até à morte dentro da banheira?”

“Ora, parem mas é de engolir essa versão do País-CMTV.[3]


E foi assim, feliz e fortificada, com o meu Sebastião cada vez maior e mais armado em cão feroz, que regressei a Estremoz. E cheguei mesmo a tempo de ir comprar fielmente a minha sandes de queijo do pequeno-almoço ao Bruno, e partilhar o grande silêncio que pairava no Zé Russo para ver, em directo e ao vivo, a selecção portuguesa de futebol feminino apurar-se, pela primeira vez, para o torneio da Grande Final da Copa de Mundo jogando contra os Camarões na Nova Zelândia. Ao derrotar as adversárias por 2 a 1 no último play-off, as portuguesas qualificaram-se para disputar o título de Campeãs do Mundo na Austrália e na Nova Zelândia, entre 20 de Julho e 20 de Agosto. Mais, há que notar que, em Estremoz, vemos estes jogos com o frisson acrescido de uma das jogadoras, a Carolina Trindade, ser daqui mesmo da cidade. É tão daqui mesmo que até eu já lhe conheço a cara, só de passar por ela na rua.

“Ai, Bruno,” suspirei eu, depois dos primeiros momentos de euforia. “Queira Deus que essa Final chegue depressa e que os senhores da bola e das direcções de informação não abusem. O que isto agora vai ser de repetição destes golos em câmara lenta, de comentadores a papaguearem banalidades que qualquer curioso papagueava melhor do que eles, de publicidade às marcas dos sponsors, de entrevistas ao treinador… Que sufoco, está a ver?”

Mike e Mãe, 2012
Embora por diferentes razões, ambos apreciamos deveras todos aqueles rabos de cavalo do futebol feminino.

Sou tão parva.

Por junto, houve as imagens obrigatórias da chegada feliz da selecção feminina ao aeroporto[4]. E, logo ali[5], o anúncio de que mais tarde o PR receberia o grupo vencedor em Belém[6].

E depois veio o grande silêncio que se segue às batalhas.

Então aquilo não era só uma gracinha em que umas miúdas jogavam à bola de rabo de cavalo? Uma gracinha não é nenhum jogo de futebol, é um entretenimento com uma grande telenovela de vencedoras lacrimosas no fim. Cenas dos próximos capítulos? Isso não existe. Aquilo não se destina a galvanizar multidões, pessoal, qual é. Aquilo é só para que não se diga que não as deixamos jogar à vontade. Mas elas que não pensem que valem tanto como os homens[7]. Então e os espelhos de vidro, não existem? Não servem para nada? As vitórias destas adolescentes armadas em rapazes não valem pelas vitórias deles. Não valem, não valem, e não valem.

Vamos é voltar à Guerra da Ucrânia, que entretanto já fez um ano.

E tu, ó Clarinha, pára de sonhar acordada, mas é.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Sem segundos sentidos whatsoever. Agora pensem o que quiserem sobre o que foi que eu estive a fazer para andar sempre assim tão feliz e produzida, e de quem é que vinham esses tais piropos matinais. Façam apostas mútuas, se quiserem, que eu ofereço-me já para banco. Acertar é que nunca acertarão, isso de certeza. Ah-ah-ah.

[2] A loucura deste estranho retiro torna-se épica à medida que a descrição continua. Agora nem sequer posso disciplinar todos estes caracóis mas sou bonita logo ao acordar? Desculpem, até parece um conflito de interesses. Ou, no mínimo, uma contradição nos termos

[3] Aprendi esta expressão com os meus sobrinhos. É perfeita para separar o trigo do joio. E é nessas alturas que se repara que há mesmo muito pouco joio

[4] TRÊS MINUTOS de imagens obrigatórias. Contei pelo relógio. E tudo isto aconteceu apenas no dia seguinte. Está bem que a Nova Zelândia fica nos nossos antípodas, mas o que é que aconteceu ao Skype? Ao Zoom? Ou mesmo ao Messenger, para os mais pobrezinhos? Raios vos partam, seus hipócritas.

[5] Deve ter sido para poupar tempo.

[6] Não será totalmente cínico sugerir que esta recepção também tem que ser porque é obrigatória.

[7] Até é provável que sejam todas fufas. Há muito quem diga, porque são mesmo muito boas na bola. Ah, mas bem podem ser fufas, que nunca serão homens. Até podem ser LGBTs da bola. Não serão homens à mesma.

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