Como bom ateu que sou, trato as religiões todas por igual. A nenhuma reservo particular importância na minha vida e vejo-as, quase todas, como motivo de divisão e conflito entre as pessoas.
Entro numa basílica católica, numa catedral ortodoxa, numa mesquita secular ou num templo budista com o mesmo interesse: a arquitectura, os materiais, as decorações, os motivos.
Gosto de imaginar como é que se construíram monumentos, tão magníficos e imponentes, há 500 ou 600 anos. Ignoro o que representam ou como foram financiados. Concentro-me na obra e aprecio a beleza daquilo que o Homem consegue fazer.
A Páscoa nunca teve outro significado para mim que não fosse a de, enquanto criança, abrir um ovo de chocolate. Era uma desculpa para doces. Ponto final. Lembro-me de, há uns anos, na Igreja da Natividade (Belém-Palestina), ver alguns visitantes ao suposto sítio onde nascera Jesus a beijar a salva de prata que assinalava o local. Entre choro e comoção, demonstravam a sua fé. Poucas horas depois, via judeus, a alguns quilómetros dali, encostados, entre pedidos, ao Muro das Lamentações (Jerusalém).
Nada, absolutamente nada, nestes rituais cruza qualquer um dos meus caminhos ou pensamentos. Respeito a fé alheia, ainda que não me consiga rever na devoção. É como sandes de leitão: respeito quem a coma, mas não percebo por que o fazem.
Dou por mim a cruzar a Praça do Vaticano no fim-de-semana da Páscoa. Não vim para aqui por acaso, mas a altura do ano foi uma mera coincidência. Passaram nove anos desde a última visita à Cidade Eterna, se a memória não me atraiçoa.
São quase 19 horas, de um sábado, e a interminável fila para ver a esplendorosa Basílica de São Pedro tem agora os seus últimos resistentes. Tal como eles, aperto o passo e penso que vou fazer uma visita nos últimos cinco minutos de abertura diária.
Quando lá entro, perco-me a olhar para cima e admiro a imensidão da catedral. Há gente sentada. Muita gente sentada. Guardas por todo o lado e senhores com fato que distribuem velas e livros de canções. Imagino que tenha outro nome técnico, mas é aquele livro que as pessoas na missa usam para fazer o coro no refrão da música. Julgo que me percebem.
Vou ouvindo uns zunzuns e as portas fecham. Vai haver missa e eu estou lá. Pensava que, na Páscoa, só se fazia aquela missa do Domingo de manhã que passava sempre na TVI e que, por norma, nos levava a mudar de canal. Afinal não, também há qualquer coisa no Sábado.
Baixam as luzes e pedem silêncio para a entrada do Santo Padre. Francisco vai mesmo contrariar a frase “ir a Roma e não ver o papa” e, ao fim de 20 minutos, aparece no meio de vários cardeais, guardas e um périplo digno de uma entrada em cena dos Queen.
A missa corre em várias línguas, Português de Vera Cruz incluído. Estão milhares de fiéis dentro da Basílica. Imagino que fossem fiéis, talvez alguns fossem apenas pessoas que pensavam ver as cúpulas da Basílica de São Pedro antes da hora de encerramento.
O Papa mal consegue falar ou mexer-se. É ajudado para se levantar, para se deslocar, para se sentar. E até para falar. Há um clima de santidade no ar. Há um luxo imenso nas paredes, nas roupas, nos ornamentos. Tudo brilha.
Saio de lá a pensar, como em todas ocasiões semelhantes, que foi uma experiência interessante. Digo-o sem preconceitos.
Da mesma forma que gostava de entrar em Meca (o que infelizmente me é vedado), gostei de ver tantos crentes numa cerimónia com o representante de Deus na Terra. Julgo que é assim que os católicos o definem, mas certamente estarei a ofender alguém.
Fora das paredes do Vaticano, contudo, o brilho do ouro é substituído pela realidade italiana. Dezenas de sem-abrigo dormem nas arcadas, ali a poucos metros da praça onde, no dia seguinte, Francisco apelará à paz na Ucrânia e ao combate à pobreza.
Todas as noites, quando os turistas se vão embora e só os polícias ficam na Praça de São Pedro, cartões com cobertores descobrem um canto protegido. Tendas de uma pessoa são montadas. Colchões são arrastados.
A ironia de uma noite passada, ao relento, com vista para um dos mais ricos Estados do Mundo, onde se prega a fé cristã e a ajuda ao próximo.
Ali, a poucos metros do Banco do Vaticano e de tesouros oferecidos pelas cortes europeias durante séculos, uma riqueza incalculável, insuficiente para dar guarida ou uma sopa quente a quem faz das arcadas do Vaticano, a sua casa. Há lá ironia maior?
Em 2021, ao fim do primeiro ano de pandemia, cerca de 5,6 milhões de pessoas, onde se incluíam um terço de todos os emigrantes, vivia em risco de pobreza. Esse período fez com que 22% da população italiana ficasse em risco de não ter acesso a comida.
Lembremo-nos que Itália foi dos países europeus que mais sofreu com confinamentos. A população empobreceu e teve, nos últimos anos, várias crises de refugiados por causa de intervenções militares desastrosas.
Líbia e Síria são alguns dos exemplos. Desde 2022, receberam mais uma onda de refugiados da Ucrânia e, como todos os europeus, vão perdendo poder de compra, enquanto são obrigados a pagar a disputa entre russos e americanos, com o patrocínio dos idiotas úteis da União Europeia.
Nunca vi, em Itália, tantas pessoas na rua a viver em caixotes como desta vez. Maradona, outro génio meio louco, disse em tempos numa afronta à Igreja Católica que, se de facto estivessem preocupados com a fome em África, em vez de rezarem, podiam começar a raspar as paredes do Vaticano. Bem sei que soa a demagogia, mas convenhamos, era de facto mais útil.
Ursula von der Leyen foi à China de braço dado com Macron, ofender um pouco o presidente chinês e complicar ainda mais a nossa vida. Macron, com Paris a ferro e fogo, foi meter-se numa aventura para a qual não tem arcaboiço, como lhe fez entender Xi Jinping.
Von der Leyen levou o recital do costume e procurou, achava ela, explicar o que os chineses devem fazer. O resultado é uma ofensa que os afastará ainda mais, novas mortes ucranianas e mais empobrecimento europeu. Aquele que tem varrido a Europa no ano pós-pandemia e que é visível de Kiev ao exterior das ricas paredes do Vaticano.
Enquanto pensava nisto, voltava a passar nas arcadas do Vaticano, a poucas horas da missa de Domingo. Tudo limpo. Tudo impecavelmente limpo e vigiado pela polícia. Os caixotes foram dobrados, as tendas desmontadas, os sem-abrigo foram para parte incerta.
Como vos explicarão em Hollywood, importa o que a câmara capta. Tudo o que está fora do enquadramento não existe. Domingo, o Vaticano aparece em todas as televisões do Mundo. Há que brilhar. Há que rezar pelos pobrezinhos sem os ver.
Segunda-feira tudo volta ao normal. Com os caixotes, a vista do saco de cama para a Basílica, a hipocrisia da fé e o desinteresse de quem nos rege.
Deve ser por isso que nunca, fé alguma, me seduziu.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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