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O que Eça diria sobre Eça

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O Parlamento português decidiu, por unanimidade, trasladar os restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional. A cerimónia está marcada para Julho. Agora, o que diria Eça sobre essa homenagem? Uma opinião livre e pessoal fica registada. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


Certamente que Eça de Queiroz ficaria contente por saber que o seu valor era reconhecido com honras de Panteão. Mas será que lhe agradaria saber que os deputados do Parlamento que, de forma unânime, aprovaram esta decisão são pessoas que ele, muito provavelmente, iria criticar?

Eça, afinal, escreveu frases como esta: “O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos”.

Uma frase que continua assim: “Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente”.

E, para terminar: “A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha, a indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro”.

Isto que citei, consta da colectânea “Uma Campanha Alegre” e diz respeito ao primitivo prólogo das Farpas, Estudo social de Portugal em 1871. São frases do homem cujos ossos vão agora repousar na antiga Igreja de Santa Engrácia. A tal das obras infinitas.

Realmente, o que diria Eça sobre Eça e a homenagem à sua pessoa? Na minha opinião pessoal – e que deve ser apenas tida como tal –, Eça diria que, apesar de compreender a decisão, ainda assim o deviam recordar como alguém que escreveu sobre um País que existia enquanto ele também existia. Se agora, os descendentes dos homens daquele tempo, decidiram reconhecê-lo como um génio, como um grande do País com honras de Panteão, ao menos que chegassem a essa conclusão por o País não continuar na mesma situação em que ele o deixara!

Diria ainda Eça que, caso as suas palavras fossem lidas ainda com a mesma luz e clareza na actualidade, ou seja, se houvesse hoje um português que as lesse como óbvias e não as citasse despudoradamente como sendo de um génio que merecia estar no Panteão – sem saberem o que o génio quis dizer na altura –, então a melhor homenagem seria deixarem-no estar tranquilo, no Douro, perto da sua Tormes e do seu Jacinto.

Teria bem mais valor um visitante que tivesse a maçada de empreender uma viagem de propósito para o visitar e, com a devida demonstração de esforço e dedicação de uma deslocação com intenção de ir desde a cidade às serras, após mais de 120 anos desde a sua morte, essa sim seria a verdadeira homenagem à sua pessoa!

Agora, vai para um Panteão que nem existia como tal quando ele morreu e que conhecia como a Santa Engrácia das obras inacabadas. Foi terminado em 1966, quando uma ditadura celebrava 40 anos. E vem agora, esta estranha forma de Democracia, que para ali já mandou toda a gente que politicamente lhe convinha, querer juntar o nome de Eça a uma lista de mortos apenas para a perpetuação da glória efémera de uns quantos políticos vivos e que nunca ninguém se lembrará de os visitar depois de mortos. Creio que Eça preferiria querer continuar a ser um génio do povo, sem necessidade de demonstração.

A 28 de Novembro de 1892, Eça escreveu na Gazeta de Notícias um artigo sobre os grandes homens de França, onde analisava precisamente como aquele País e aquela cultura que tanto o marcara, decidira homenagear os seus grandes. Concluía que a França não deveria continuar a procurar mais nomes grandes e deixar “solitário no seu Panthéon como foi único no século pelo génio e pela universalidade da glória” apenas um escritor: Victor Hugo.  

Quem souber a diferença entre quem foi Eusebiozinho e Eusébio da Silva Ferreira, poderá perceber melhor do que muitos o que Eça de Queiroz teria a dizer sobre a decisão do Parlamento português em autorizar a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão.

Não resisto ainda a contar aquilo que, certa vez, uma pessoa da família de Eça, partilhou como sendo uma pequena anedota sobre a inauguração da sua estátua no Largo Barão de Quintela – a original, em pedra, do escultor Teixeira Lopes, inaugurada em 1903 e que hoje está no jardim do Museu da Cidade, no Campo Grande e que, por ser constantemente vandalizada, foi substituída por uma réplica em bronze.

Uma empregada de Eça e da sua mulher, D. Emília de Castro Pamplona, ao ver a estátua onde o escritor está abraçado à figura alegórica da verdade nua, com o escrito “Sobre a nudez forte da Verdade o manto diáphano da fantasia”, comentou depois ao chegar a casa: “O Senhor Eça está muito parecido, mas agora a senhora Dona Emília, ai meu Deus, não deveria estar assim”.

Eça conhecia-nos melhor do que ninguém. Estamos todos no fundo da sua pena, sobretudo nessa obra magistral que é Os Maias. Sei disso, porque vejo-os todos os dias nas ruas. Somos os seus personagens. E quando sigo pelas Janelas Verdes, sei que não existe o Ramalhete, mas é aí que está a casa que os Maias vieram habitar em Lisboa. E quando corro para o autocarro, penso sempre: “Ainda o apanho! Ainda o apanho!”

Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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