ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Eles sabem (balada romântica para robôs)

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes


Se um pardal enervadamente esvoaça na rua, pousando entretanto para debicar uma beata de cigarro junto ao passeio, sentimos nos ossos o asco que ficou intrínseco a considerar que sim, estamos num mundo à parte do mundo natural.

Nós, e todas as nossas coisas, somos entidades sujas a poluir o mundo, desligados e impositivos. Tudo o que fabricamos e construímos desintegra-se em três vezes mais partículas de lixo que entope pulmões, quem o vê, envergonha-se.

(Vamos pedir desculpa aos pardais.)

brown and white bird on brown rock in water

Eles sabem que as investigações são gritos ecoados no vento.

Eles sabem que as manifestações são pulgas sacudidas em cão sarnento.

Eles sabem que braços e pernas se cansam e que a máquina continua, avassaladora, devoradora.

Até os foguetes e luzes de reacções e revoluções mais não são que bailado de pernas esticadas e movimentos coreografados.

E assim, ainda antes dos carros voarem, o fantasma da inteligência artificial finalmente adquire contornos e aterroriza muitos. Outros há que relativizam, é uma ferramenta, é só mais um martelo, é o curso natural do nosso curso artificial e desconectado (pede desculpa ao pardal).

Até o senhor do espaço, do carro eléctrico mais bem publicitado da indústria e do pardal azul (também conhecido como Twitter) continua o seu caminho para entrar dentro de cérebros. E até ele se levanta, em mais um esvoaçar coreografado, e diz ao Robot que fique em coma uns seis meses, que vá dormir, que pare de crescer e aprender.

Que estranho tal pedido.

Como pedirmos aos nossos filhos que se congelem no tempo (mas o tempo continua, sempre o tempo).

Claro que o pedido ser feito por gigantes, que competem em roubar o fogo aos deuses, é só uma coincidência (será?), e que os receios de estarmos a tactear uma caixa de Pandora são legítimos (ou infundados?).

Há pelo menos um século que desenhamos e contamos histórias de antecipação a este momento.

Quase todas ilustradas de forma assustadora.

Quase todas inevitáveis, um caminho inexorável onde a Humanidade se encarrilou há muito tempo.

E, mesmo assim, estamos espantados. Como se não fosse suposto termos chegado aqui.

photo of girl laying left hand on white digital robot

Eles sabem, mas nós não sabemos. Nós continuamos o nosso dia, a fazer tanta coisa, a processar informação a alta velocidade. A tentar determinar o que é importante, o que é essencial, o que é mesquinho e o que é transcendente e incontornável. O que é melhor e o que é pior. Qual o caminho enquanto navegamos sem ter mapa.

Parece que o medo é que a criação reflicta o seu criador.

Parece que o medo é que o filho mate o pai, assim que foque o olhar e conclua que o pardal vale mais que nós.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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