VISTO DE FORA

Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)

person holding camera lens

por Tiago Franco // Maio 1, 2023


Categoria: Opinião

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Em Outubro de 2017, à pergunta sobre os baixos salários na Padaria Portuguesa, respondia Nuno Carvalho, um dos donos da empresa, o seguinte:

Apresentamos um plano de integração e de formação, damos oportunidades de carreira – vários chefes de fábrica entraram como operários a ganhar 580 euros e recebem três vezes mais agora. Também temos uma série de regalias. Fazemos investimento a sério nas pessoas: uma vez por ano juntamos todos os trabalhadores num arraial de verão e fechamos as lojas mais cedo. Mensalmente, reunimos com as equipas de gestão de loja, de forma absolutamente informal, fazemos um piquenique no jardim da Estrela, onde ouvimos inputs sobre o negócio, até mesmo sobre políticas salariais. Cada vez que nasce um bebé, oferecemos um creme e um babygrow e escrevo um postal de aniversário personalizado a cada um dos trabalhadores. Temos estes cuidados. Somos muito informais e tratamos as pessoas como pessoas. Criamos um espírito de equipa que vale muito mais do que a remuneração base.

people building structure during daytime

Esta resposta, só por si, explica a miséria laboral em que se tornou Portugal. Quase seis anos depois, nada mudou – e mais, até fez escola. Postais personalizados, espírito de equipa, cremes e piqueniques: tudo menos um salário digno e justo. O sucesso das empresas em Portugal – lembremo-nos que a Padaria Portuguesa era apontada como um caso de sucesso e de inovação – assenta essencialmente em foguetório e em baixos salários. Palavras-chave de motivação (ou keywords cheias de team spirit, como nos diria o amigo Nuno) que levem as pessoas a gostar e vestir uma camisola de quem as explora.

O primeiro de Maio, Dia do Trabalhador (não do colaborador) é, ainda, um momento de luta que não devemos desperdiçar ou sequer ignorar. É o dia em que nos lembramos de quem perdeu a vida em nome dos direitos que hoje damos como garantidos. E é o dia em que, olhando em redor, percebemos o que falta fazer nas relações laborais. É um dia que deve ser de tomada de consciência colectiva perante o assalto a que a classe trabalhadora tem sido sujeita.

A Função Pública perde poder de compra há mais de 10 anos e, no sector privado, recém-licenciados trabalham por autênticas esmolas. Há um sector da população que trabalha sem conseguir sair da pobreza, um conceito surreal num país de Primeiro Mundo, e outros que se limitam a produzir a troco de um salário que lhes permite somente pagar as contas.

Isto não é viver – quando muito é sobreviver, é subsistir, é não desistir. É resignar-se.

Portugal é hoje, visto de fora, como um sítio de mão de obra qualificada de baixo custo. Aliás, já um ministro dos Negócios Estrangeiros nos publicitou dessa forma, procurando atrair investimento numa visita oficial de Estado a um país rico.

De cada vez que se fala em aumentar o salário mínimo, lá aparece o presidente da CIP ou os CEOs dos grandes grupos com a habitual lengalenga: “o salário mínimo tem de ser indexado à produtividade”. Este é um mantra que se aplica a quem trabalha, a quem depende de um salário para viver. Não se aplica a gestores de topo ou a accionistas parasitas que recebem dividendos dê por onde der. Lembremo-nos do BES, há mais de uma década a receber dinheiro do Orçamento de Estado, e ainda há pouco tempo nas capas dos jornais pelos prémios fabulosos que repartia pelos seus administradores.

O primeiro de Maio devia recordar à classe trabalhadora que ela é a maioria – que, sem ela, nada se faz, nada se transforma, nada se produz. Abusos como aqueles que vemos diariamente, com tentativas constantes de validar baixos salários, deveriam ser contestados nas ruas. Sempre que um liberal nos diz que as empresas é que geram emprego, alguém lhe devia gritar, com um megafone aos ouvidos, que os trabalhadores é que criam as empresas. Uma empresa sem trabalhadores chama-se prédio. Normalmente vazio. Produz, quando muito, pó.

a large room with pillars

Não é fácil perceber que, em Portugal, praticamente oferecemos a nossa força de trabalho. E isso é particularmente grave para quem tem nela, na força de trabalho, a única moeda de troca e o único garante de sustento. Há muito que ultrapassámos os padrões mínimos de dignidade e, por mais que tentem, não há justificação para tamanha precariedade e pobreza ao fim de 35 anos na União Europeia. Não há. São precisos vários Governos de uma incompetência atroz para que. hoje, trabalhar em Portugal seja um exercício de masoquismo.

Reconheço não ser fácil perceber esta realidade quando nos comparamos com os nossos amigos, colegas, familiares. Todos na mesma cidade, todos mais ou menos dentro do mesmo sistema capitalista de exploração e lucro à custa dos baixos salários. É preciso sair da zona de conforto, ver outras realidades e perceber que é possível gerar riqueza e distribuí-la por patrões, funcionários e Estado de uma forma mais equilibrada. É possível trabalhar e viver bem. A classe média devia ser o nosso ponto de partida, não o objectivo final.

A pressão para o aumento do salário mínimo destes últimos anos é uma alavanca essencial para a defesa dos trabalhadores. Se quem investe não percebe que, a longo prazo, o modelo das baixas remunerações tem os dias contados – porque o capital procura sempre um povo ainda mais pobre –, então é o Estado que deve meter essas barreiras. Em vez de aumentar impostos, deve, isso sim, criar as condições para que o salário mínimo permita uma vida digna. Coisa que hoje, apesar do esforço de alguns partidos de esquerda, ainda não existe.

man in white shorts carrying a child in white shorts

O trabalho é a nossa contribuição para o Mundo. Seja qual for, onde for, mais ou menos elaborado, todos somos necessários. Não existem profissões menores ou trabalhadores dispensáveis. Aquilo que existe, e muito, é uma falta de consciência da classe trabalhadora. Do seu poder, da sua importância, da sua força.

Com um mundo em transformação, depois do ataque aos direitos básicos durante a pandemia e, agora, a continuação da perda de direitos laborais e capacidade de poder de compra, nunca a união entre trabalhadores foi tão necessária.

Tenhamos consciência colectiva e ninguém, absolutamente ninguém, nos poderá vencer nesta guerra. 

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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