ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Gente de vidro e gigantes de ferro

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes


Dei por mim a pensar onde andarão os dias de festejo. Aqueles dias de fim de guerra, em que tudo sai para a rua numa explosão de alívio. Aquela celebração de vitória, porra, finalmente o rio desaguou! Mas, pelos vistos, já não se festeja fim de guerra, já não existe o momento de catarse, se calhar nunca existiu (também era propaganda?)

E até porque pessoas de vidro quebram com facilidade, basta um ventinho, e caem, uma ventania, e voam desamparadas (e tu que sonhas que voas), um encontrão, e estilhaçam. Se calhar, talvez seja melhor não sacudir muito o mundo com festejos. A ver bem, já aprendemos que não há fim à vista. Essa ingenuidade finou-se com os nossos avós e em silêncio, as guerras estão sempre aqui, ali, em todo o lado.

white and black spider web on brown soil

Somos gente de vidro que segue de cabeça baixa, pois quem a levanta arrisca a uma nicada nas esquinas dos cotovelos. Ninguém quer estar a olhar para ver os gigantes de ferro a levantarem-se por toda a parte. Postes, antenas, sistemas reticulados em módulos de treliças cinzentas e ásperas à alma (será o metal macio?), tudo o que é deles levantado de cabeça no ar que nem totens infernais, chifrudos armados em discretas árvores a passar cabos de gigante em gigante numa opressão total, permanente, enorme.

É a modernidade, não queres ter rede em casa? Não queres acender a luz de noite? Não queres tudo isto que temos para te dar e para andares mais depressa? (Gente de vidro não pode andar depressa, porque parte!)

Estamos todos traumatizados. Os gigantes de ferro tomaram conta do mundo, e caminham a passos largos pelos nossos quintais. Anunciam e berram zumbidos de alta tensão (não faz mal à saúde, não?), rasgam o vento com turbinas majestosas ou deitam pestanas de painéis solares a decapitarem árvores ainda jovens (tão jovens), a modernidade e tudo o que precisamos para alimentar este vício de estar acordado (é segura e eficaz, não?)

axe on wooden table

E há quem tenha medo da inteligência que é artificial. Viram-nos a abrir caixas na rua e a ligar computadores? (É inofensivo, não?) A treparem postes e a mexericarem afincadamente naqueles fios todos (os fios de Ariadne)?

E têm medo de um robot porque pensam, as pessoas de vidro, que os robots ainda estão longe, no éter. Não estão, já andam e são gigantes. Feitos de ferro agarrados aos nossos ombros de vidro.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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