Sempre vi como um ritual, pois a pessoa chega, senta-se no café do costume, pede a mirita do costume, o carioca do costume, e vira as páginas do jornal do costume, até varrer o obituário, diligentemente, em busca de amigos, conhecidos, relativos de relativos.
Cara a cara, esbatida a negro com breves palavras de despedida, os que se vão embora recebem talvez a única menção da sua vida num jornal, sendo arquivados minuciosamente por pessoas que varrem o cemitério de papel.
– Olhe! A minha rua tem sido uma razia! Mais um!
Sempre se morreu, dizem, sempre se morreu assim, clamam. Estranho pensamento de quem voluntariamente se fechou numa gaiola para que não morresse ninguém.
– Outra vez? Sempre a mesma conversa, a mesma conversa! Já acabou! Já passou!
Acabou para eles no obituário é certo. Arrumamos as memórias algures na nossa mente, envoltas em aroma de manteiga quente e camomila que elegantemente se esfuma acima da chávena.
Não é mórbido, sabem? É ritual de beleza na verdade. Seguimos atrás da morte a ver quem vem de seguida, a ver o nosso lugar na fila e quem na nossa frente se atreve a tocar-lhe nos ombros para que se volte para si, silenciosamente, o manto negro a adormecer os olhos, mas apenas os olhos (se morrer, ainda fico aqui?) rezando para que não toque os nossos e quem deveria estar atrás de nós (os nossos), julgando a justiça e a tristeza de quem se vai (o sol foi embora, mãe?).
E no caminho mais próximo do fim rezamos todos (os nossos).
A perda.
(As flores estão a fechar, mãe?)
Quem respira o mundo em golfadas faz por aguentar os embates. Troca duas palavras sobre quem se fina, marca presença no velório de quem quer dever o respeito, comparece ao funeral de quem chorará.
– Eh pá já não nos víamos há quinze anos!
Quem respira o mundo devagar, como quem o mastiga pousadamente, corre com um dedo o obituário, arrastando o negro pela página abaixo, guardadores de memórias e de todos os nomes.
Quem fica, quem vai.
Os filhos da madrugada e seus herdeiros a pairar em círculos sobre searas esquecidas e albufeiras sujas. Parecem nem querer saber, não contam as caras das lápides, não contam as moedas para o molete.
Sabem, disse-se por aí, que na verdade temos três saudades.
Jorge Dias foi o autor que tal me ensinou. Temos a saudade que herdamos dos celtas: lírica, sonhadora, ligada à natureza (Caeiro, estás aí?); temos a saudade do estilo germânico: empreendedora, fáustica, numa ânsia por novos mundos e conquistas; por fim, enfim, a saudade do estilo oriental: um ensimesmar mórbido de glória que já passou.
É nisto que estamos, não é? A carpir-nos a nós próprios, sem herdeiros para um obituário de vivos.
Mãe, sabes o que é microquimerismo? Significa que fiquei dentro de ti, mesmo depois de sair. Assim ficamos de onde saímos, e onde saem pessoas que nos deixam cá ficar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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