Correio Trivial

A maldição das condecorações

black and white abstract painting

por Vítor Ilharco // Junho 10, 2023


Categoria: Opinião

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Chegou o 10 de Junho e os fornecedores de medalhas e comendas da Presidência da República esfregam as mãos numa demonstração de felicidade.

Este é o Natal dos empresários do ramo.

As encomendas, que foram sempre volumosas, passaram a ser extraordinárias com o Presidente dos afectos e selfies.

Desde o 25 de Abril, as medalhas distribuídas rondam as vinte mil.

Eanes, um militar circunspecto, entregou 4.602, Mário Soares, 5.145, Jorge Sampaio 4307 e Cavaco Silva 2.325.

Espera-se um recorde absoluto do actual Presidente.

Portugal, como se sabe, está cheio de gente empenhada na luta pela melhoria da vida dos seus conterrâneos, de cientistas brilhantes e com descobertas marcantes, de desportistas aclamados pelo talento reconhecido internacionalmente, de escritores consagrados por obras notáveis, de actores prestigiados por interpretações aplaudidas à exaustão, de músicos ilustres criadores de obras que todo o mundo conhece, de actores procurados por todas as grandes companhias de teatro ou realizadores de cinema.

Isto para não falar dos inúmeros políticos que nos enchem de orgulho cada vez que se pronunciam no Parlamento, nos diversos Ministérios ou na Presidência da República.

Quem não se curvou, respeitosamente, depois de ouvir algumas intervenções de Parlamentares, na Casa da Democracia?

Quem não levantou, alguma vez, a cabeça e olhou, de modo sobranceiro, para um pobre estrangeiro com quem se tenha cruzado, depois de escutar, enlevado, as palavras de um qualquer Ministro, a explicar, de modo simples e pragmático, as medidas tomadas para resolver o mais complicado dos problemas?

Quem não aguardou, com impaciência, que o Presidente Marcelo se dirigisse à Nação, quer num discurso patriótico quer numa ida a comprar gelados, certo de que as suas palavas dissipariam as mais preocupantes dúvidas e acalmariam os mais tenebrosos receios?

Quem não aplaudiu, veementemente, o regresso, ainda que fugaz, de Cavaco, que nos permitiu concluir que, por mal que pensemos estar, estamos muito melhor do que no tempo áureo do homem de Boliqueime?

Toda esta gente é merecedora de uma medalha no peito.

É tudo gente que o Povo quer ver justamente agraciado com um penduricalho ou um colar.

A ânsia com que a população aguarda os nomes dos seleccionados este ano é enorme.

Mais, o Povo estaria receptivo a outros nomes e a outras profissões.

Desde logo, por exemplo, os comentadores televisivos que nos esclarecem as dúvidas, nos indicam o caminho, nos sugerem interpretações.

Começando por Marques Mendes, um crítico à sua dimensão, que fala convictamente sobre qualquer tema.

Há, pois, uma quantidade enorme de portugueses que merecem e esperam, ansiosamente, por uma condecoração.

Pessoalmente os nomes interessam-me por uma única razão:

Vendo a lista dos condecorados eu sei quem serão os arguidos em processos judiciais nos próximos meses.

É da praxe.

O Presidente condecora, o Ministério Público acusa.

Não sei se por causa da conhecida inveja dos portugueses, a verdade é que, nos últimos anos, condecorado mediático torna-se, em pouco tempo, arguido.

Muitas vezes condenado.

Recordo alguns nomes com o cuidado de os colocar por ordem alfabética porque sei que as suas acusações são de gravidades muitíssimo diferentes e acreditando, até, que alguns acabarão por ser considerados inocentes:

António Mexia, Armando Vara, Carlos Cruz, Cristiano Ronaldo, Dias Loureiro, Diogo Gaspar, Duarte Lima, Helder Bataglia, Henrique Granadeiro, Jardim Gonçalves, João Pereira Coutinho, Joe Berardo, Jorge Ritto, José Mourinho, José Sócrates, Lino Maia, Macário Correia, Manuel Maria Carrilho, Mesquita Machado, Narciso Miranda, Ricardo Salgado, Rovisco Duarte, Valentim Loureiro e Zeinal Bava.

Tenho a certeza de que faltarão alguns, mas esta lista dá para entender que há uma maldição nas condecorações.

Tenho a certeza de que não passará pela cabeça de qualquer um dos responsáveis pela distribuição destas distinções, depois de ler os meus textos, ousar pensar, sequer, em entregar-me a mais insignificante delas.

O meu mais sincero bem-haja.

E faço votos de que o Presidente o condecore por essa inteligente decisão.

Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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