VISTO DE FORA

O Aleluia e a chiclete

person holding camera lens

por Tiago Franco // Junho 26, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Não sei bem a que sociedade de consumo imediato se referiam os Táxi, no seu álbum de estreia com o mesmo nome, no longínquo ano de 1981, a década que representou o boom do rock português. 

Não tenho assim tantas memórias desses tempos, embora já por cá andasse, mas pergunto-me se não estaria a banda de João Grande a antecipar a mudança de século e a sociedade em que nos tornámos.

Drama, escândalo, miséria e destruição. Tudo consumido ao minuto em doses insuportáveis de sofrimento alheio a que nos tornámos indiferentes. 

Pensei nisto a propósito de Luis Aleluia, o eterno menino Tonecas como lhe chamaram os jornais no dia em que se soube da sua morte.

Gosto pouco de abordar dramas alheios sobre os quais, em regra, sabemos ou percebemos uma ínfima parte. Mas parece que Luís Aleluia deixou uma mensagem de despedida, o que me levou a pensar que não tinha mais vontade de andar por cá.

Este caso é notícia de jornal porque o actor era uma cara conhecida dos portugueses, tal como outros actores, jornalistas, músicos e personagens que nos habituámos a ver, e que, por uma ou outra razão, acharam que era chegada a hora de acabar com o sofrimento.

Penso, em alturas semelhantes, quantas vezes deve este homem ter pedido ajuda sem dizer muito. Quantas vezes deve ter dado a entender que precisava de algo mais.

É um traço desta sociedade, a tal de consumo imediato, de já não conseguir ouvir. Não há tempo, não há paciência. Estamos fechados nas nossas rotinas, nos nossos problemas, sem espaço na agenda para quem está ali ao lado.

Os nossos problemas, as lutas diárias, são o nosso grande drama. Pode ser ir buscar o filho à escola no meio do trânsito da tarde ou discutir a vida da amiga que, entretanto, se afastou. A nossa realidade, por muito simples e corriqueira, não nos permite levantar a cabeça do umbigo e olhar um pouco para o lado.

man standing in front of the window

Luís Aleluia disse, numa entrevista há poucos anos, que tinha sofrido maus-tratos e violência em criança. Acrescentou que encontrava amor e felicidade nos amigos e nos palcos. Tal como ele, há um infindável número de anónimos que sofre sem falar, que timidamente assume uma dificuldade, que dá indicações de que o desencanto pela vida vai aumentando. 

Mas não ouvimos. Não temos tempo. Passamos o dia a consumir qualquer coisa, sem sabor, muitas vezes sem importância, para no dia seguinte começarmos o processo novamente. 

Mascamos. Deitamos fora. E nunca olhamos em redor.

A depressão existe e, tal como a sociedade de consumo imediato, mata.

Sejam simpáticos uns com os outros. Não fechem os olhos aos avisos.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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