ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Conveniente ‘in prima partem’

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minuto/s restantes

É por nos ser conveniente seguir a rua principal (que não existe, não há rua principal, não há princípio) para chegar ao destino (para quem ainda o tenha), que viramos à esquerda, e não à direita (não é para mim).

É por nos ser conveniente calar em vez de falar (não cantar) para baixar a cabeça (para quem ainda a tenha), que seguimos a vida empurrados pela multidão (a formiga no carreiro?)

É por nos ser conveniente a conivência com o crime, com o pecado, com a imoralidade, com a falta de ética de invertebrados que tomaram conta dos edifícios, que não denunciamos (but not a snitch!), não nos pomos de pé e somos crescidinhos, adultos, rijos (isso é masculinidade tóxica? Mandem entrar os homens por favor!)

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Um bufo.

Um delator.

Ou um whistleblower? (Precisam-se provas!)

Se eles, supostos líderes, tivessem espinha, acordavam de manhã com dor nas costas por aquilo que fazem por si próprios contra nós, com ou sem falcão.

Burgueses insuportavelmente viscosos, com cheiro de cremes por cima de plástico, animados por palhaços de calças de ganga com muita graça, muita graça mesmo, assim como senhoras bem compostas e bem apresentadas na mesinha brilhante da televisão. Que nojo.

E como se atrevem a não se envergonharem pelo nojo que nos metem? Cábulas! Doninhas que deslizam junto às paredes com a cuequinha húmida por poder ir dar um suposto passeio de uma suposta fortuna de bitcoin. Que nojo.

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Influenciadores que se fotografaram com a máscara personalizada, olhem para mim que lindo, fui ver os gorilas na bruma, fiz mais um teste, portei-me bem, é preciso portar bem. Que nojo.

E pensam eles que a Madame Guilhotine não aparece ciclicamente na história para mudar o capítulo. Pensam eles que a cumplicidade com aquilo que é errado não tem dolo (é errado! É errado! Nem tudo pode ser relativo! Não podem eternamente escudarem-se na desculpa que não sabiam!)

Anjinhos que dividiram câmaras e juntas de freguesia (uma p’ra ti outra p’ra mim), e nós não sabemos dos senhores que vieram bater à porta para pagar a viagem da diáspora no dia do voto?! Não sabíamos que era errado?! Não comentamos entre dentes e finos e tremoços o nojo da corja que andava a acolchoar o “seu”?

– Ah mas vou aproveitar a viagem! (Não é para mim!)

Não sabemos como funcionam os corredores das academias, as palmadinhas nas costas, as simpatias, as guerras e rixas internas, as lutas por poder que nada constroem, nada trabalham?! Estão espantados com o desemprego jovem? A desorientação dos miúdos? A “fuga de cérebros”?! Pois, mas quantos estiveram a dar-lhes a mão? Quantos estão com dor de costas a segurar uma instituição por arames? Quantos estão sobrecarregados com o trabalho das alminhas que estão a governar o “seu”?

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– Eu vou botar lá por ele! (Não é para mim!)

Que guardem lá o avental! Que se abotoem lá com as lombadas de palavras que não são deles! Virão uma vez mais os propagandistas do ministério da verdade gritar “negacionista”, “chalupa”, “o que fazer com eles?” Ninguém viu nada, agora foi tudo contra, o assalto aconteceu à porta do prédio e as persianas desceram sorrateiramente assim que a polícia chegou. Ninguém viu nada…

É por nos ser conveniente passar pelos pingos da chuva (não temos o chuço?) que seguimos pela rua principal para chegar mais depressa ao nosso destino e pousarmos a cabeça na almofada esta noite, dormir, na paz da falta de espinha.

É por nos ser conveniente que temos a máquina de lavar roupa e a máquina de lavar louça, esses triunfos que emanciparam as mulheres.

É por nos ser conveniente que pedimos conselho jurídico no hipermercado, em promoção da semana.

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É por nos ser conveniente que despachamos o chato do arquitecto, que mais a mais é caro, e só faz bonecos, e mais a mais a realidade virtual agora até trata disso.

Conveniente.

Segui pela rua principal, para chegar mais depressa ao destino, e avistei ao longe. Havia neve naquele campo, em pleno Julho, em pequenos tufos espalhados por entre a relva alta. Um campo murado e cercado por uma rede alta onde ovelhas se passeavam preguiçosamente.

Ao aproximar-me vi que, afinal, a neve eram flores.

Conveniente.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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