O ano escolar terminou e chegou a hora da devolução à escola dos manuais escolares usados para serem reutilizados. Em escolas públicas do ensino básico, professores receberam uma tarefa de última hora, uma espécie de prémio de final de ano: apagar com borracha os milhares de páginas de todos os manuais que os seus alunos usaram ao longo do ano.
A justificação para esta “prenda” é de que não há auxiliares de educação nem administrativos disponíveis para “limpar” os livros e apagar os exercícios feitos a lápis pelos alunos.
Assim, depois de um ano lectivo, ainda sem férias, há professores a rever uma a uma mais de 18.000 páginas de manuais escolares usados para apagar com borracha cada palavra, frase, gatafunho ou desenho feitos pelos alunos.
Isto é normal? É. Mas não devia ser.
Quando se ordena um professor a executar esta tarefa está-se, sobretudo, a desmotivar e a afastar cada vez mais os professores da escola pública. Se calhar é esse o objectivo. Está-se a abusar do professor, das suas competências, talento e experiência. Da sua função.
Para os professores, este tipo de ordens soma-se à crescente burocracia e tarefas fora da sala de aula que são obrigados a cumprir.
Sempre que ouço professores e assisto a reuniões com directores de turma fico a pensar como ainda aguentam trabalhar assim, nas condições que hoje em dia enfrentam. O desgaste. Os fins-de-semana a trabalhar para pôr tarefas em dia.
E os alunos é que pagam também, por esta relação tóxica que muitas escolas (e a tutela) assumem com professores.
Sabe-se que em muitas escolas os meios são escassos. As escolas fazem o que podem para manter tudo a funcionar. Diz-se que “o país é pobre”, que “não há recursos”. Mas há. Para a TAP. Para o Novo Banco. Aquela obra pública cujo custo sai o triplo do orçamento previsto. Para os amigos de políticos e gestores públicos que ganham concursos e contratos de consultadoria. Para familiares de governantes. Para os amigos de autarcas.
Só não há dinheiro para as escolas. Ou para centros de saúde. Para hospitais. Maternidades. Ainda se fossem companhias aéreas, bancos falidos, empresas desfalcadas…
Olho para este caso dos professores a apagar manuais usados, e penso nos jornalistas, nos polícias, e em todos os profissionais que acabam a ter de cumprir tarefas que não era suposto estarem a executar. Penso no abuso que sofrem muitos profissionais, apenas para manterem o salário e o emprego.
No caso dos jornalistas, a desmotivação é grande. Hoje, os mais “antigos” nas redacções estão resignados e a contar os dias para a reforma ou saída antecipada. Entre os mais novos, muitos nem sabem o que é jornalismo porque começam logo a fazer “notícias” e cobrir conferências que são pagas por empresas ou organismos públicos, autarquias, etc.
Muitos jornalistas hoje, quando escrevem notícias ou fazem entrevistas, fazem-no no âmbito de uma qualquer “parceria comercial” contratada. São encomendas que estão previstas em cadernos de encargos obscuros e secretos porque não são do domínio público.
Isto é normal? É. Normalizou-se e hoje é o dia-a-dia das redacções nos grandes órgãos de comunicação social no país.
Deveria o regulador dos media exigir a divulgação de todos os contratos das chamadas “parcerias comerciais” feitas com grupos e órgãos de comunicação social? Obviamente. Mas não. Ficam no segredo dos deuses.
Conhecem-se apenas os contratos com entidades do Estado e que obrigatoriamente são divulgados no Portal Base. E mesmo esses são publicados sem a respectiva e obrigatória divulgação dos cadernos de encargos. É lá que está descriminado o que é encomendado: quantas entrevistas e notícias o órgão de comunicação terá de publicar no âmbito daquela encomenda.
Para quem não sabe, é proibido jornalistas executarem encomendas. Mas é isso que vemos todos os dias. É só ir à rede social LinkedIn e ver que a cada meia-hora há uma conferência em directo do Público, do Expresso e de outros jornais, rádios e TVs.
Cada uma dessas conferências tem directores, editores ou jornalistas a executar encomendas previstas num caderno de encargos. Cada uma dessas conferências tem contratos assinados com entidades que pagam para que ali estejam jornalistas, editores, directores. Cada uma dessas conferências tem jornalistas a escrever sobre o que lá se está a passar e a fazer entrevistas com os “convidados”. É só ler os textos e as entrevistas, assistir a algumas dessas conferências para perceber que alguém – um autarca, um gestor, uma empresa, um produto, um sector – está a ser promovido. Uma “mensagem”, várias “mensagens” de marketing estão a passar para o público, para os leitores, os ouvintes, os telespectadores.
Há cadernos de encargos que são um autêntico filme de terror para quem ama o jornalismo. Mas mesmo os contratos mais “suaves” são de fugir. Porque são uma violação da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.
Dizem que “o país é pequeno”, “não há leitores”, que os jornais “estão em crise”. Dizem que são as parcerias comerciais que pagam os salários das redações. Podem até ser. Mas o que as redações fazem hoje, muitas vezes, não é jornalismo. Portanto, essas parcerias comerciais pagam para que os meios de comunicação social se transformem em máquinas de marketing e promoção, usando de forma abusiva a profissão, os jornalistas, o jornalismo.
Se não há dinheiro para se fazer jornalismo, fazer notícias e entrevistas pagas não é a solução. Porque notícias pagas e entrevistas encomendadas é o oposto de jornalismo. É o anti-jornalismo. Mais vale assumir e fechar. Ou trabalhar a sério para se encontrar uma solução “para a crise”. Como desbastar os milhares de euros pagos a colunistas amigos e políticos. Como cortar salários e prémios na direcção. Como cortar em carros de empresa, cartões de crédito. Como debater de forma séria formas de financiar de forma sustentável um sector que é crucial para a democracia e o país. Terá de envolver financiamento público? Debata-se isso! Mas publicar notícias pagas travestidas de jornalismo é que não. Mais vale fechar.
Mas terá de passar por directores de jornais e TVs deixarem de querer ser “gestores”, “administradores” e ter futuros cargos políticos ou em grandes empresas. Terá de começar por haver directores que amem o jornalismo e queiram ser… jornalistas. Queiram fazer e honrar o jornalismo. Sem o vender ao desbarato, arruinando-o. Sem o usar para fins comerciais ou políticos.
Mas terá de começar pelos jornalistas dizerem “não” e recusarem serem usados para “vender” bens e serviços, fazer marketing e executar cadernos de encargos de publicidade e comunicação.
No caso dos jornalistas, como no dos professores, enquanto ninguém der um murro na mesa e disser “não”, a relação de abuso, o desgaste e o ambiente tóxico vão continuar.
Até lá, perde o jornalismo e o ensino. Perdem os leitores. Os alunos. Perdemos todos.