Balindo, as ovelhas aproximaram-se do muro. Que inopinado! Para ruminantes fofos pareciam estranhamente seguros de que eu não seria uma ameaça. Seria por conviverem com flores que parecem neve ou talvez me pedissem que as libertasse da sua cerca, ares dos tempos, presas sem predadores.
Não lhes toquei. Sinceramente, ocorreu-me que poderia ser mordida. Sabe-se lá o que pode fazer uma ovelha reclusa a quem caminha do lado de fora. Melhor manter distância segura, do lado de cá do muro (mais conveniente).
Ainda faltavam largos passos para chegar ao meu destino (em princípio) e contemplei pelo caminho outras tribos urbanas deslocadas do cheiro a cimento e rebarba de metal das obras que nos cercavam. Gatos tinhosos que se digladiavam junto a embalagens de comida em múltiplas pilhas de gordura junto a um silvado de uma casa devoluta, apaparicados por duas senhoras que lhes estimavam a dieta em afincada penitência humanitária. Três voluntários na mata mais distante que ceifavam furiosamente a vida de flora dita “invasora”, plantas que sempre achei inofensivas mas, esclareceram-me, seriam uma praga não autóctone que punha em causa a sobrevivência de espécies indígenas.
Que estranho, estranho mundo que nós vivemos.
Que inconveniente. Espécies mais oportunistas e eficientes em lutar pela vida, a comprometerem a segurança de outras. Há que ceifá-las pois! (É?)
Orgulhosamente sós, os indígenas da Sentinela do Norte também acham conveniente repudiar o mundo inteiro da sua casa. E o mundo lá vai tentando respeitar isso, até porque cada tentativa normalmente acaba numa escaramuça de arco e flecha.
Os Sentinelas existem, nós – o mundo – sabemos que eles existem. Não sabemos que língua falam, quantos são, como se organizam entre eles, que crenças e fés alimentam – se é que alimentam algumas – sabemos apenas que estão ali, de sentinela em pleno Índico, sabemos que não somos bem vindos de barco, de avião, de helicóptero, a nado. Podemos levar prendas, podemos levar “a palavra”, não fomos convidados a entrar e não têm eles qualquer intenção de sair.
Podemos pairar por perto em mar alto. É possível que os vejamos a começar a preparar pequenos barcos para virem ter connosco e nos demonstrarem o que pensam sobre espécies invasoras.
O mundo, para os Sentinelas, não existe, ou não importa que exista. É uma inconveniência que não augura nada de bom e não é tolerada. Será, porventura, um notável exemplo de seres humanos sem curiosidade. Ou então uma pobre tribo oprimida em que jovens ambiciosos se vêem amarrados por anciãos medrosos. Ou talvez até, esteja ali, por entre prendas e subornos do passado, um segredo, um tesouro de magia que não sabemos que existe, o que contém, que fonte da juventude se esconde e os alimenta candidamente para lhes suportar a vida rodeada de mar, preciosa e incólume.
A Índia assegurou na lei que não os devemos incomodar. Que se o fizermos nem mesmo os nossos ossos serão recuperados, ficaremos lá, sim, para sempre (que inconveniente!)
A cada passo, dois vocalistas de pregões divergentes ralham um com o outro, vagarosamente, as suas palavras saem com mais velocidade do que o seu caminhar, pernas sincopadas a empurrar o caminho de ambos como se carris invisíveis os conduzissem para uma cave escura onde vão ficar a falar sozinhos (não os sobrevoem).
– Isto o que faz falta é mais controlo!
– Não! Não! O que faz falta é menos! Nenhum controlo permite o crescimento!
E eles sorriram ao juiz, com uma disposição solarenga
Porque não tinham a cura mas certamente precisavam do dinheiro
Ao vislumbrar o meu destino vi flores roxas sacudidas pela brisa junto à estrada. Mas ao aproximar-me descobri que era lixo.
Inconveniente.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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