Depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Conselho Superior da Magistratura acabou por permitir a consulta do célebre inquérito à distribuição da Operação Marquês. Mas 638 dias depois do pedido, o CSM insiste agora em não cumprir uma sentença que lhe causará engulho, e expurgou, para já em cópias disponibilizadas ao PÁGINA UM, partes do relatório do inquérito, algo que a sentença não lhe permite. Além disso, o CSM impede agora o PÁGINA UM de fotografar as páginas do processo. A alternativa é pagar mais de 500 euros ao CSM pela fotocópia de cerca de mil páginas do processo, mas sem garantias de virem imaculadas.
Esta foi a primeira intervenção do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, e ainda não acabou. Tem sido um longo calvário de 638 dias, exactos 21 meses, hoje com resultados positivos, embora ainda parciais, para a transparência democrática e uma prova da eficácia de um jornalismo independente e persistente: o PÁGINA UM tem, desde hoje, cópia do inquérito final do Conselho Superior da Magistratura (CSM) à distribuição da denominada Operação Marquês, o mega-processo, que ainda aguarda julgamento, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Tudo começou em 2 de Novembro de 2021. Perante a sistemática recusa do CSM em divulgar o inquérito de distribuição da Operação Marquês junto da comunicação social, o PÁGINA UM, então ainda em preparativos para a sua abertura, apresentou um requerimento para, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) para acesso e “eventual obtenção de cópia (analógica ou digital), aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. Paulo Fernandes da Silva no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio p.p., bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada Operação Marquês.”
Iniciava-se, naquele preciso momento, um calvário de 638 dias em busca da transparência.
Numa primeira fase, o CSM recusou essa pretensão ao PÁGINA UM – como até já fizera inicialmente com Sócrates. Em 21 de Dezembro de 2021, a juíza Ana Sofia Wengorovius – adjunta do CSM – emitiu um parecer alegando que o acesso por um jornalista àqueles documentos violaria ou afectaria “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, salientando que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.
O PÁGINA UM apresentou então uma queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que em Fevereiro do ano passado concedeu um parecer favorável ao acesso. Mas o CSM reiterou a recusa, recordando que os pareceres daquela entidade “não são vinculativos”, e desafiava “o requerente [director do PÁGINA UM] querendo, intentar respetiva acção especial de acesso a documento administrativo”.
O PÁGINA UM aceitou o “convite”, depois de exarar o seu público protesto num artigo, publicado em 23 de Março passado, intitulado “Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal“.
Com o apoio dos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO – este seria o primeiro processo de intimação, conduzido pelo advogado Rui Amores –, a intimação do PÁGINA UM foi bem-sucedida. Em 30 de Junho do ano passado, o juiz Pedro de Almeida Moreira, do Tribunal Administrativo de Lisboa, fez uma sentença a intimar o CSM, “no prazo de 10 dias, facultar-lhe [ao director do PÁGINA UM] o acesso aos documentos por aquele solicitados”.
Isto sucedeu depois deste juiz ter exigido que o CSM enviasse o relatório da inspecção em envelope selado para averiguar se os seus argumentos relacionados com uma alegada existência de dados nominativos tinham razão de ser.
Contudo, o juiz Almeida Moreira, após consultar o relatório do inquérito, concluiu que “compulsada a informação remetida pelo Requerido [CSM] em envelope selado, considera este Tribunal, à semelhança do que entendeu o[a] CADA, no douto parecer elaborado, que em causa estão unicamente dados atinentes ‘aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada’ (…), não se identificando, como tal, motivos para cercear a regra geral do livre acesso a documentos administrativos”.
E acrescentou ainda o juiz que, “e ainda que assim não se entendesse – id est, que os documentos que o Requerente [director do PÁGINA UM] aqui procura obter consubstanciassem documentos nominativos em sentido próprio, porquanto continentes de dados pessoais, nos termos e para os efeitos do RGPD [Regulamento Geral de Protecção de Dados] –, considera este Tribunal, em face da concreta informação ali vertida, que sempre deveria prevalecer o direito de acesso do Requerente aos referidos documentos face à protecção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade.” Ou seja, o direito à informação e o direito de um jornalista informar era mais relevante.
Porém, nem assim o CSM desistiu e recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul. Mais uma vez – pela terceira vez –, não lhe deram razão.
No passado dia 29 de Junho, num acórdão demolidor, aprovado por unanimidade por três desembargadores e com o apoio do Ministério Público, deliberaram que a sentença do juiz Almeida Moreira tinha de ser mantida em toda a linha, concluindo que não houve qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação”, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.
O acórdão mostrou-se particularmente importante por também clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base com os contratos públicos.
Nessa linha, os desembargadores salientam que essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo CSM, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E, nessa linha, defenderam os desembargadores, o CSM tinha a obrigação de permitir desde logo o acesso.
Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”
Os desembargadores concluem que o CSM não poderia ter decido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA, até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”
Mas nem assim o CSM parece ter aprendido. Esta tarde, tendo o director do PÁGINA UM se deslocado à sede do CSM para consultar o processo de averiguação à distribuição da Operação Marquês – constituídos por três volumes com um total de 1.024 páginas – foi confrontado com alguns impedimentos ilegais e com a recusa de cumprimento das determinações da sentença.
Com efeito, além de o director do PÁGINA UM ter sido impedido, a partir de uma determinada fase da consulta, de obter a reprodução por fotografia das páginas do processo de averiguação – uma prática legal, que tem sido sistematicamente corroborada pela CADA em já, pelo menos, quatro deliberações –, as cópias disponibilizadas do relatório final estão mutiladas a tinta negra, apagando tanto os nomes dos intervenientes como também a discriminação de eventos, como seja número de processos, data de distribuição, o tipo de distribuição ao juiz e o escrivão que interveio em cada processo.
Em alguns casos, as rasuras a negro ocupam partes substanciais ou mesmo quase a totalidade das páginas, e nunca estão em causa mais do que nomes ou referências a processos judiciais, Não há, aliás como bem salientava o Tribunal Administrativo de Lisboa, qualquer dado nominativo.
Por exemplo, no interrogatório que o instrutor do processo de averiguação ao juiz Carlos Alexandre não consta qualquer dado nominativo, e até o endereço indicado foi o profissional, que não é considerado dado nominativo para efeitos de protecção de dados.
Apesar de essa informação ser acessível no processo original em papel, mas cuja reprodução fotográfica foi impedida, a obtenção dessa informação por meios manuais seria particularmente penosa. Além disso, a obtenção de fotocópias – além de o CSM poder, se não cumprir a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, mutilar as partes que não quer mostrar – teria um custo exorbitante.
Com efeito, e como o CSM teve o cuidado de avisar o PÁGINA UM com antecedência, de acordo com o Regulamento de Emolumentos, a reprodução por fotocópia simples de cada folha, com anverso e reverso (ou seja, duas páginas), tem o custo de 1/50 unidades de taxação (UT), sendo que cada UT corresponde a um décimo (1/10) do indexante dos apoios sociais (IAS), que este ano está fixado em 480,43 euros.
Mesmo considerando que as 1.024 páginas de todo o processo de averiguações – que inclui, por exemplo, os depoimentos do juiz Carlos Alexandre – coubessem em 512 páginas, o custo total que o PÁGINA UM teria de suportar ascenderia aos 492 euros.
Na verdade, deverá superar os 500 euros, uma vez que haverá páginas que, no processo, não têm reverso.
Foi apresentado de imediato um requerimento à juiz secretária do CSM, que alegadamente deu ordens para que não fosse permitido ao director do PÁGINA UM continuar a fotografar o processo de averiguações que resultou no inquérito à distribuição da Operação Marquês.
O requerimento do PÁGINA UM foi manuscrito com o que havia à mão: umas simples folhas brancas A5. Legalmente, é válido, e aguarda-se agora a resposta, até para saber se se mostra necessária nova intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa.
N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM só são possíveis com o apoio dos leitores. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.